REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

…E tive 13 anos outra vez – Sofia Karam

a chegada da MTV no brasil no final de 1990 foi um divisor de águas. parei de ver novelas e só ouvia e via música. tinha muita coisa nova aparecendo e também a descoberta de coisas mais antigas. no início, a MTV tinha 1 minuto de anúncio por hora, o resto era só música. o novo e vasto mundo musical se abriu. mas lembro da MTV mais em 1991 depois do Rock in Rio II, que também foi um marco. vi pela TV em Corumbá: Guns N’Roses, Faith no More, INXS, Prince, Santana, o vocalista do Information Society de patins, as roupas e a dança da cantora do Deee-Lite, e tantas lembranças. agora fecho os olhos e vejo aquela sala de televisão em Corumbá. nesse Rock in Rio não me levaram, minha mãe foi. eu passei as férias de verão, como de costume, com a família da minha mãe, entre Corumbá e as fazendas no pantanal, no Mato Grosso do Sul.

Rio de Janeiro.

o ano de 1993 começou na praia. o verão foi todo na praia, até o outono, e alguns dias do inverno, para voltar na primavera e novamente no verão, já no final do ano.

praia é alegria. sol, mar, amigas, amigos, e muitos meninos gatos. nessa época me interessava cada semana por um menino; muitas vezes, nem tinha trocado uma palavra com ele, mas achava-o bonito, interessante. mas ninguém se interessava por mim. passei a juventude com essa frase latejando na cabeça. “ninguém se interessa por mim.” naquela época talvez fosse por eu ser a mais novinha da galera, mas na verdade, eu sentia que nunca se interessariam por mim, que eu era feia e gorda, e desinteressante. estava em busca da minha autoestima, ela devia estar em algum lugar. às vezes, aparecia, e me sentia boba por escrever frases como essa; mas na maioria do tempo me sentia a menina menos interessante – ou, a mais interessante do mundo. é estranho mesmo. mas nunca fui de deprimir, tinha um lado que balançava, me chamava para baixo, mas gostava demais da vida, da praia, de sair para dançar, dos meus amigos, de música, cinema, da minha mãe…

em 1993 logo no início do ano teve o hollywood rock.  o nirvana foi uma das atrações principais, junto com red hot chili peppers, L7, alice in chains. na verdade, eu queria mesmo que o pearl jam tivesse vindo. era a minha banda favorita naquele verão.

27 de abril de 1994

querido Kurt,

agora que escrevo, você já morreu. acho que se suicidou.

morreu aos 27 anos, como Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin. 27 anos parece uma idade chave. sonho em ter 27 anos. acho que sempre quis ser adulta. só tinha 12 anos naqueles dias do verão de 1993 que nos encontramos. logo faria 13 e seria uma teenager. aliás, resolvi escrever em português mesmo, pois você nunca lerá essa carta. nem sei se a enviaria se você estivesse vivo, e se enviasse, se chegaria até você, se você leria, mas como já está morto, tudo certo.

maio 2021

abrindo caixas com minha mãe, me deparo com a agenda de 1993 e redações dessa época, até mais ou menos 1994. encontrar esse mundo de quando tinha 13 anos foi uma volta a um lugar tão distante e tão conhecido. um mundo caiu sobre mim e achei que dali brotaria um corpo de escrita.

na agenda, há bilhetes, cartões e cartas de amigos. tirei uma foto de uma carta que uma grande amiga me escreveu e mandei para ela; ela respondeu que riu, que reconhece a letra, mas que não reconhece aquela voz.

resolvi reler esse 1993, trilhar um caminho por ali, e percebi no corpo daqueles papéis escritos como aquele tempo distante está conectado com o que sou hoje, me identifico completamente com a voz da agenda.

e 1993 foi um ano de virada, a entrada na adolescência que já se anunciara no ano anterior foi atravessada. uma semana antes dos shows do hollywood rock teve a nossa apresentação. fazia teatro no tablado e no início daquele ano em pleno verão foram as apresentações do espetáculo que marcaram o fim do ano de 1992. O Inspetor Geral, uma transposição da peça russa de Gogol para o Brasil dos anos Collor. A descoberta de uma paixão, de uma grande alegria. Na agenda há vários “Eu amo teatro”, e frases como “Shakespeare é deus”. no dia da apresentação do espetáculo tem escrito: “… a 2ª apresentação foi MARAVILHOSA! LINDA! [com pontos de exclamação e em caixa alta] Chorei p/ caramba, queria que nunca acabasse…”.

Outra grande amiga sempre fala de uma noite em que saímos tarde do ensaio [na agenda descubro que foi no dia do ensaio geral], minha mãe tinha ido nos buscar e passamos para comer alguma coisa em um posto de gasolina na vieira souto. naquela época surgiam as lojas de conveniências nos postos de gasolina. essa amiga sempre comenta desse dia, que para ela tinha sido um marco, e que se lembra mais do que dos ensaios e do próprio espetáculo: nós ali lanchando no posto tarde da noite, aqueles momentos que nos faziam sentir “gente grande”. e na agenda encontrei o tíquete de compra desse dia, e a impressão perdura, não é como esses de hoje que em dias já se apagou. 1 refresco por 6.500,00 [não lembro da moeda na época] e um croissant recheado por 25.000,00. Pude falar para ela o dia exato daquele dia marcante [13 de janeiro de 1993] e ainda que ela foi dormir na minha casa e que dormimos às 2h30 da manhã.

as agendas, os diários, comprometem, os acontecimentos permanecem fixados nas palavras no papel. a memória, lendo os trechos escritos no passado, parece perder um pouco da sua independência. será?

a memória é viva, criadora. está no presente? como fabular o que se passou se os escritos, as anotações deixaram ali seu rastro?

nesse verão inesquecível do início de 1993 durante o hollywood rock, conheci o Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, a Courtney Love, sua mulher, mais vários outros músicos, e ainda uma das minhas melhores amigas da vida junto com um grupo de meninos e meninas que se tornariam a galera dos próximos anos. Faço uma pequena descrição desses dias no meu livro, corpo em combate, cenas de uma vida, mas relendo os escritos na agenda, sinto um outro ritmo, um outro foco. uma outra experiência, bem distante da descrição fabulatória do livro.

tinha pensado para essa fala, continuar uma carta esboçada para o kurt cobain logo depois que ele morreu, em abril de 1994.

mas, desviei. ainda na forma epistolar, uma outra interlocutora possível: a filha de uma amiga, de 14 anos, com quem troquei algumas mensagens sobre livros e filmes. ela me contou que se interessava por feminismo, que o assunto está sempre presente nas conversas com as amigas e que adoram livros e filmes que tratam do assunto. me recomendou um filme: Moxie, que logo fui ver. Moxie é sobre uma garota, numa cidadezinha fictícia no Texas, que inicia um fanzine com ideias feministas e acaba promovendo um acontecimento na sua escola.

com a troca de mensagens e a agenda de 1993, fiquei com vontade de contar para ela como foi aquele ano. que o feminismo era um assunto bem distante para mim e para as minhas amigas. e que vivíamos uma espécie de vontade centralizada de estar com meninos, se posso dizer assim. que parecíamos mais presas nas armadilhas da cultura e da sociedade, e num ideal de beleza e de relação. muito dos acontecimentos pareciam girar em torno dos possíveis flertes e a solução da vida era se apaixonar e ser correspondida. ou também ter meninos que se interessassem por mim. e apesar de ficar feliz com os filmes, a música, o teatro, os amigos, tinha um lado que sofria por não ser ou me sentir a garota interessante. o que quer que isso possa significar.

aí comecei a separar pedaços das anotações, dos escritos.

durante o primeiro semestre há uma escrita diária: filmes que vi, clipes, músicas e discos que ouvi, pessoas que encontrei ou que falei no telefone. nossa! como falávamos no telefone. e o relato do dia, fui à praia, à escola, ao cinema, a um show, tive prova, saí para dançar … as descrições de sentimentos e as coisas mais íntimas normalmente estão em papéis avulsos presos na agenda com clipes. recortes de jornal, bilhetes de eventos… palavras escritas ocupando quase a página inteira sobre os escritos com pilot fluorescente.

um trecho escrito no dia do meu aniversário de 13 anos me saltou aos olhos. depois de falar tudo que fiz durante o dia, nomear todos que estiveram juntos em diferentes ocasiões do dia, que começou na praia, leio: “…Meu aniversário foi bom, cheio de amigos. tava super empolgada, pensei que ia me sentir diferente, mas não, foi igual a qualquer dia. Mas tava feliz, isso é o importante. Queria ter ficado um pouco sozinha para pensar. Mas na praia foi ótimo. Eu fiquei bem no mar. Acho que o niver não é nada de tão espetacular, é bom por que as pessoas ‘ligam’ mais para você. Não consigo explicar. Espero que de aniversário, eu ganhe muito amor, paz, saúde, amigos, talento, muitas felicidades e principalmente muita vida. Eu amo muito D+ a vida e espero fazer muitos, muitos aniversários. Eu amo minha mãe, não sei porque, mas ontem eu senti algo diferente em relação a ela, descobri que a amo mais do que pensava. Por favor, eu quero ser muito feliz, e viver muito, acreditando em mim, gostando de mim, aproveitando muito, amando muito e sendo muito amada. Obrigada por tudo. Hoje foi ótimo.”

Tem muitas frases anotadas de filmes, de livros, músicas, escritores, pensamentos: “as ilusões sustentam a alma como as asas a um pássaro.” essa do Victor Hugo nunca esqueci; nesse ano revi muitas vezes Sociedade dos Poetas Mortos no vídeo e Carpe diem, seize the day, aproveite o dia virou um mote. “Fui à floresta porque queria viver profundamente e sugar a essência da vida. Eliminar tudo que não era vida. E não ao morrer descobrir que não vivi.” Essa frase era uma das que ecoava na minha cabeça e que pegou meu coração, sabia de cor vários trechos do filme.

Dia 24 de agosto de 2021.

Jean-Luc Nancy morreu ontem. uma intrusão. não pude não desviar e pensei nos anos em que [uma parte do] seu pensamento e [de] sua escrita invadiram a minha vida, o meu pensamento, a minha escrita. revi o e-mail que pensei algum dia lhe escrever, falando da afinidade com seu pensamento tão empolgante e desbravador e que estou trabalhando na tradução de um texto que ele compôs para um espetáculo de dança e que ele lia em cena. mais uma carta imaginada. Nancy abriu uma grande fresta no meu pensamento. volta e meia buscava seu nome para ver o que estava fazendo, falando, escrevendo. e sempre tinha uma novidade, uma entrevista... ele escreveu sobre os tempos de pandemia, un trop humain vírus [um vírus demasiadamente humano]. e deixou uma frase que retorna, que nos leva ao início da vida, antes dos 13 anos: “Nous devons réapprendre à respirer et à vivre, tout simplement (…) Soyons des enfants. Recréons un langage. Ayons ce courage.” cito:

[“Nós devemos reaprender a respirar e a viver simplesmente… Sejamos crianças. Recriemos uma linguagem. Tenhamos essa coragem.”]

temos a cada nascimento de um ser humano a possibilidade de fazer diferente, de recriar outra existência, e o que vemos na maioria das vezes é a reprodução do mesmo, o conforto do conhecido, lembro de Clarice Lispector escrevendo sobre o menino bebê que ela não consegue desenhar, cito: “tudo de novo mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar.” […] “Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício.”

e a morte de Jean-Luc me lembrou a morte de Gilles Deleuze e o meu primeiro contato com ele, por ali, naqueles anos da adolescência: uma matéria do 7 de novembro de 1995 no segundo caderno do jornal o globo. eu já tinha 15 anos. A manchete: “Morte do filósofo francês erige paradoxo entre uma obra dedicada à vida e o suicídio”. tenho guardado esse pedaço de jornal, foi uma das peças que encontrei na caixa com a agenda de 1993.

deve ter sido ali que li primeira vez a palavra vitalismo.

e voltei para a agenda que tem muitos: “Eu amo muito a vida”

pensei na vida, na morte, no amor, nesses meus intercessores que morreram, Kurt Cobain, Deleuze e Nancy.  

no suicídio…

na morte de Nancy, um sobrevivente, Jean-Luc Nancy viveu 30 anos com o coração de um outro, pensei que ele fosse eterno.

  • sofia karam é autora de “corpo em combate, cenas de uma vida” (7Letras, 2019) e “carta ao [meu] pai” (7 Letras, 2020). texto apresentado no simpósio “ARQUIVO E INACABAMENTO: ESCRITAS LACUNARES E PENSADORES/AS-CATADORES/AS” – abralic 2021