REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

Quatro poemas – Louise Glück

Tradução de David Bernat

LIBERAÇÃO

Tem nuvens na minha mente,

não consigo mais caçar.

Deixo minha arma na trilha do coelho.

Era como se eu me tornasse essa criatura

que não foi capaz de decidir

se foge ou se fica imóvel

e então ficou presa aos olhos do caçador―

E pela primeira vez eu soube

que esses olhos têm de estar vazios

porque é impossível

matar e questionar ao mesmo tempo.

Então a armadilha ruiu,

o coelho se livrou. Fugiu

pela floresta vazia

essa parte de mim

que era a vítima.

Apenas as vítimas têm um destino.

E o caçador, que acreditou

que aquilo que luta

implora ser abatido:

essa parte está paralisada.


LIBERATION

My mind is clouded,

I cannot hunt anymore.

I lay my gun over the tracks of the rabbit.

It was as though I became that creature

who could not decide

whether to flee or be still

and so was trapped in the pursuer’s eyes

And for the first time I knew

those eyes have to be blank

because it is impossible

to kill and question at the same time.

Then the shutter snapped,

the rabbit went free. He flew

through the empty forest

that part of me

that was the victim.

Only victims have a destiny.

And the hunter, who believed

whatever struggles

begs to be torn apart:

that part is paralyzed.


O TRIUNFO DE AQUILES

Na história de Pátroclo

ninguém sobrevive, nem mesmo Aquiles

que era quase um deus.

Pátroclo parecia com ele; vestiram

a mesma armadura.

Sempre nesse tipo de amizade

alguém serve o outro, alguém é menos que o outro:

a hierarquia

está sempre aparente, embora nas lendas

não se pode acreditar―

sua fonte é quem sobrevive,

aquele que foi abandonado.

O que foi o incêndio dos navios gregos

comparado com essa perda?

Na sua tenda, Aquiles

de luto com todo o seu ser

e os deuses viram

que ele já estava morto, vítima

dessa parte que ama, dessa parte que é mortal.


THE TRIUMPH OF ACHILLES

In the story of Patroclus

no one survives, not even Achilles

who was nearly a god.

Patroclus resembled him; they wore

the same armor.

Always in these friendships

one serves the OTHER, one is less than the other:

the hierarchy

is always apparent, though the legends

cannot be trusted―

their source is the survivor,

the one who has been abandoned.

What were the Greek ships on fire

compared to this loss?

In his tent, Achilles

grieved with his whole being

and the gods saw

he was a man already dead, a victim

of the part that loved,

the part that was mortal.


Olmos

O dia inteiro tentei distinguir

necessidade e desejo. Agora, no escuro,

sinto apenas tristeza por nós,

os construtores, as plainas de madeira,

porque eu estive olhando

atentamente esses olmos

e vi que o processo que cria

a torta, imóvel árvore

é o tormento, e entendi

que não produz formas a não ser retorcidas. 


ELMS

All day I tried to distinguish

need from desire. Now, in the dark,

I feel only bitter sadness for us,

the builders, the planers of wood,

because I have been looking

steadily at these elms

and seen the process that creates

the writhing, stationary tree

is torment, and have understood

it will make no forms but twisted forms. 


CAVALO

O que o cavalo te dá

que eu não posso?

Observo você quando está sozinho,

quando cavalga no campo atrás do curral,

suas mãos encravadas na escura

crina da égua.

Então eu sei o que jaz por trás do seu silêncio:

ódio, raiva de mim, do casamento. Ainda assim,

você quer que eu te toque. Você exclama,

como noivas clamam, mas quando te olho não vejo

nenhuma criança no seu corpo.

Então o que é?

Nada, eu acho. Apenas pressa

de morrer antes que eu morra.

Num sonho, eu te vi cavalgar o cavalo

pelo campos secos e então

desmontar: vocês dois caminhavam juntos;

no escuro, não tinham sombras.

Mas eu as senti vindo na minha direção

já que de noite podem ir a qualquer lugar,

são suas próprias guias.

Olhe para mim. Acha que eu não entendo?

O que é o animal

se não um caminho para fora dessa vida? 


HORSE

What does the horse give you

that I cannot give you?

I watch you when you are alone,

when you ride into the field behind the dairy,

your hands buried in the mare’s

dark mane.

Then I know what lies behind your silence:

scorn, hatred of me, of marriage. Still,

you want me to touch you; you cry out

as brides cry, but when I look at you I see

there are no children in your body.

Then what is there?

Nothing, I think. Only haste

to die before I die.

In a dream, I watched you ride the horse

over the dry fields and then

dismount: you two walked together;

in the dark, you had no shadows.

But I felt them coming toward me

since at night they go anywhere,

they are their own masters.

Look at me. You think I don’t understand?

What is the animal

if not passage out of this life?


Traduzir Louise Glück

David Bernat

Louise Glück é a autora de uma obra cujo sentido é bastante humano. Alguns chamam de autobiográfico, talvez um resquício da poesia confessional de gerações americanas anteriores. Porém, sua obra cada vez mais busca certa objetividade, tentando esclarecer a natureza da ferida, trazendo aquilo pelo que uma sensibilidade singular passa e tentando dar-lhe uma abertura universal.

Em outubro de 2020, ainda na pandemia, recebi a notícia de que uma poeta americana fora o Nobel do ano. Isso me foi algo intrigante, pois a poesia americana que costumo ler é mais antiga, no mínimo com já meio século de idade. Fui então perguntar a uma amiga canadense se ela já tinha ouvido falar dessa autora e ela me indicou dois livros para começar: The Wild Iris (1992) e The Triumph of Achilles (1985). Esse segundo, do qual constam os poemas traduzidos aqui, teve grande importância no desenvolvimento da obra da autora.

A linguagem se torna mais clara, mais precisa, ainda mantendo essa forte ligação que a autora constrói entre sujeito e objeto, duas partes do diálogo. No primeiro poema, isso pode ser visto na relação entre presa e caçador, como ela tenta entender a natureza do ato que as une. O segundo, sendo comum na poesia da Glück usar temas míticos, é sobre a relação entre Pátroclo e Aquiles, de novo buscando alguma elucidação sobre a constituição de certo elemento humano presente num ser visto como divino. Um poema foca na vítima, outro naquele que foi abandonado.

O terceiro poema parece ser um indício da direção que sua obra tomaria. Depois do The Triumph of Achilles e de um bloqueio criativo, veio um livro chamado Ararat, talvez sua obra mais prosaica. Logo em seguida, The Wild Iris, onde a autora indaga a vários tipos de plantas sua natureza, atrás daquilo que é vivo e consciente de sua mortalidade. No poema, o construtor cuja tarefa é aplainar madeira parece sentir compaixão pela natureza dessa árvore chamada Olmo. De novo, a poesia parece construir com cuidado parte do diálogo, já que a resposta da árvore é imagética e não verbal. A tradução tentou seguir ao máximo uma linha tênue entre familiaridade com a língua, sem erudições, e uma precisão referencial que, apesar de tanta escolha, parece algo simples e intuitivo.

Já o último, discutindo a relação entre um casal e uma égua, é uma espécie de confissão inaudita. Talvez esse poema ecoe o primeiro poema do livro, algumas vezes lido como um hino feminista, outra faceta que aparece na obra. Pode-se dizer que fica claro a tentativa da autora não só de tecer uma sensibilidade e sua resposta a algo, mas de tecer a confissão do testemunho de alguma espécie de mistério. De novo, as perguntas são diretas e de maneira quase informal: a tradução precisa passar essa naturalidade fria, indagante. Só assim, o final, a revelação própria de um mistério alheio parece realmente uma conquista, uma sentença cheia de gravidade. Isso mostra como a linguagem simples pode muito bem captar coisas complexas.

  • Louise Glück (1943-2023) FOI UMA ENSAÍSTA E POETA AMERICANA. PUBLICOU SEU PRIMEIRO LIVRO, fIRSTBORN, EM 1968. aO LONGO DAS DÉCADAS SEGUINTES, SE CONSOLIDOU COMO UMA DAS MAIS IMPORTANTES POETAS DE SUA GERAÇÃO, RECEBENDO PRÊMIOS COMO O PULITZER E O nATIONAL bOOK aWARD. FOI POETA LAUREADA DOS eua DE 2003 A 2004 E RECEBEU, EM 2020, O pRÊMIO nOBEL DE lITERATURA, “POR SUA VOZ POÉTICA INCONFUNDÍVEL QUE COM UMA BELEZA AUSTERA TORNA UNIVERSAL A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL”.
  • David Bernat nasceu em Naviraí (MS) em 1997. é POETA E aluno do curso de graduação em Língua Portuguesa-Literaturas da Faculdade de Letras da UFRJ. dELE, ESTUÁRIO PUBLICOU UMA SELEÇÃO DE POEMAS DO LIVRO INÉDITO lEVEZA.