REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

A festa das serpentes – Kelvin Falcão Klein

No dia primeiro de maio de 2022, um domingo, fui para a cidade de Cocullo, para assistir o tradicional rito de San Domenico abade, a “festa das serpentes”. Como a festa não era realizada desde 2019, por conta da pandemia do coronavírus, pude notar que a expectativa era grande para esse retorno. Andando de trem ao longo da semana anterior, por exemplo, observei que em vários momentos os alto-falantes anunciavam medidas especiais para lidar com a demanda: trens extras saindo de Pescara e de Roma, paradas excepcionais na estação de Cocullo. O trem que finalmente me levou até lá estava cheio – crianças, turistas, italianos, os mais variados idiomas, as mais variadas vestimentas, novos contingentes engrossando a massa a cada estação. O deslocamento daquela multidão me fazia pensar em um grande animal que acorda depois de longa hibernação, o animal “Turismo”, do qual eu era, sem dúvida, uma pequena parte (uma escama).

Cocullo é uma minúscula cidade da província de Áquila, na região do Abruzzo, contando com 213 habitantes segundo o censo de dezembro de 2021. As notícias no dia posterior à festa afirmam que mais de dez mil pessoas foram à cidade para testemunhar a retomada do rito de San Domenico. A cidade está sobre uma colina, estrategicamente situada entre o vale Peligna e a região da Mársica, local histórico da população itálica pré-romana dos mársios. A área é abastecida pelo rio Sagitário e é precisamente essa condição ambiental que favorece a proliferação de ofídios. Algumas versões da história dizem que o culto das serpentes iniciou com os mársios e com a deusa Angícia, irmã de Circe (aquela que, na Odisséia de Homero, transforma os companheiros de Ulisses em porcos), ligada às artes curativas e ao manejo das ervas terapêuticas. Outras versões dão conta da chegada de San Domenico à cidade, por volta do ano 1000, quando o povoado sofria com uma invasão de serpentes venenosas. O abade, com sua flauta, teria encantado os animais, tornando-os inofensivos e afastando o perigo.

Como saio de Pescara, o trem precisa chegar a Sulmona – de onde me observa a estátua de Ovídio – para então partir para Cocullo. Em Sulmona, contudo, o vagão que já estava cheio fica lotado: muitas pessoas em pé, espremidas, e escuto um homem que reclama com o fiscal. Ele diz que todos ali compraram a passagem com antecedência, que a empresa deveria garantir lugares para todos, que a situação toda é uma bagunça, “um nojo” (fa schifo). Ainda estávamos no início da manhã, a chegada a Cocullo estava prevista para as 10h30. Chegaríamos no meio da programação da festa, que já havia começado às oito da manhã com a missa, seguindo com a recepção das “Companhias de Peregrinos” às nove, até chegar à missa principal das 11 horas, seguida do clímax, a procissão ao meio-dia, quando a estátua de San Domenico é retirada da igreja, coberta com as serpentes e carregada pelas ruas do povoado. Na chegada à pequena estação, leva tempo até que todo o fluxo de pessoas consiga sair do trem e chegar à estrada que leva ao centro histórico – uma caminhada de pouco menos de um quilômetro.

San Domenico, também conhecido como “San Domenico de Foligno” (são muitos Domenicos, ou mesmo Domingos), celebrado por seus milagres e sua vida errante de pregador, nasceu em 951 e morreu em 1031. Na igreja de Cocullo dedicada ao santo estão guardadas duas relíquias, um de seus molares (outro está na igreja de Villalago, 16 quilômetros de Cocullo) e uma das ferraduras de sua mula, que teriam sido presenteadas pelo próprio Domenico antes de sua partida. Na estátua levada em procissão, o santo leva na mão direita o bastão que o identifica como abade (símbolo do pastor que guia e do peregrino que se apoia) e, na esquerda, uma ferradura. Como o santo é protetor dos dentes, das mordidas de cobra e da raiva, a tradição pede aos fiéis que, antes da saída da imagem da igreja, façam soar o sino utilizando a boca: usando um lenço para cobrir os dentes, o fiel deve morder a corrente do sino e fazê-lo soar com um movimento da cabeça. Domenico teria arrancado o próprio dente para dá- lo de presente à cidade.

O dente de Domenico é guardado dentro de um ostensório de prata, que geralmente é levado na procissão, embora eu não o tenha visto. Por que ele oferece o próprio dente aos habitantes da cidade antes de seguir viagem? Ele aproveita uma tradição local, que relaciona os dentes às serpentes e às artes da cura, e sobrepõe sua presença e sua influência, usando um fragmento do próprio corpo? Ou ocorre o inverso: é a partir da relíquia de Domenico que se constrói a história da relação entre os dentes, as serpentes e a proteção contra o mal, aproveitando também resquícios de tradições pré-cristãs? Uma lenda conta que, chegando a Cocullo, Domenico vê uma multidão que tenta seguir um lobo raivoso que capturou uma criança e está prestes a levá-la para a selva. O santo chama o animal e ordena que largue a criança; ele obedece e se afasta. Diante do milagre, a população solicita (exige?) um amuleto que a proteja dos animais “descontrolados”. Daí surgem as relíquias, o dente e a ferradura.

Quando chego à cidade com meus companheiros de trem, ela já está lotada – a maioria dos visitantes vai de carro. Enquanto não começa a procissão, as pessoas circulam pelas ruelas estreitas, comendo, bebendo, rindo, gritando. As mais variadas tribos tocam ombros na massa ondulante, ciclistas e camponeses, jovens universitários e motoqueiros, religiosos compenetrados e turistas alemães de bermuda e camiseta, etc. Como a estátua do santo só é coberta de serpentes depois que deixa a igreja, os “serpários”, ou seja, aqueles responsáveis pela captura e manutenção das serpentes até o dia da festa, esperam nas ruas com os animais. Não só isso: eles mostram as serpentes, oferecendo às pessoas que querem tocar, tirar fotos, enrolá-las no pescoço e nos braços. As cobras são de espécies não venenosas, mas ainda conseguem morder – observei que vários dos serpários estavam com os dedos sangrando por conta das mordidas.

Os serpários começam a recolher as serpentes no vale assim que a neve começa a derreter, em fins de março. Mantém os animais em caixas de madeira, alimentando-os com ratos vivos e ovos cozidos. Elas são identificadas com anéis coloridos envolvidos no corpo, próximo ao rabo, possivelmente para indicar a qual serpário pertencem. Ao longo de toda a festa – e de toda a preparação para a festa – fica muito evidente a estratificação entre aqueles que pertencem e aqueles que não pertencem ao lugar: a banda que acompanha a procissão é meticulosamente uniformizada; além da banda, vemos também um pequeno grupo de músicos, com instrumentos de sopro que evocam a flauta encantatória de San Domenico; à frente da estátua caminham mulheres com trajes típicos, algumas levando cestas com pães sobre a cabeça, outras levando serpentes nas mãos; porta-estandartes completam a comitiva, levando bandeiras de Cocullo e de outras cidades vizinhas.

No caso daqueles responsáveis pelo manejo das serpentes, se trata de uma posição – e um conhecimento – passado de geração em geração. Não se herda apenas o privilégio do acesso à estátua do santo, mas também as estratégias de captura e de reconhecimento das espécies inofensivas. Em meio às crianças perdidas na multidão, aos cães assustados na multidão, o fedor de cigarro e a sinfonia de celulares e câmeras, os serpários circulam com a segurança de coadjuvantes nobres, detentores do segredo que transforma uma festa religiosa como tantas em uma ocasião pitoresca, especial, extraordinária. Eles dominam a paisagem exterior, entretendo o público com as serpentes e levando-as até o santo assim que ele sai da igreja, recolhendo-as ao final. Quando a imagem do santo é devolvida à igreja e o serviço religioso encerrado, fogos de artifício são disparados da praça central, ribombando através de todo o vale e enchendo o ar de fumaça.

É difícil entrar no clima da festa com a quantidade de celulares e câmeras que ocupam todo ângulo disponível. Ainda assim, causa uma profunda impressão a visão da estátua cheia de serpentes, mesmo à distância. Embora os principais momentos sejam a saída e a chegada do santo diante da igreja, é possível aproveitar uma boa visão do cortejo ao se deslocar para algum ponto estratégico – como na parte mais alta de uma bifurcação, por exemplo. Como a cidade é pequena, são poucos os pontos por onde a procissão não passa. Neste ano a festa ofereceu um componente pitoresco a mais: o contraste entre o presente das máscaras e o passado arcaico da manipulação das cobras; a visão de pessoas com máscaras cirúrgicas, espécie de estratégia pós-apocalíptica de contenção de danos, lado a lado com serpentes removidas de buracos onde dormem o sono ancestral de centenas de gerações. O maior estranhamento, contudo, continua sendo a estátua coberta de serpentes: algo que deveria estar congelado, fixo, e, no entanto, se move.

O ponto central do fascínio da festa está nessa linha tênue que separa o sacro do profano, o terreno e o cósmico. A imagem do santo, símbolo da divindade, é coberta de serpentes, símbolo do pecado, daquilo que é rasteiro, insidioso e venenoso. O divino, contudo, precisa da estranheza do pecado para intensificar seus efeitos. A movimentação das serpentes dá a impressão de que a estátua toma vida, de que do interior do gesso brotam braços, tentáculos, pescoços, rabos e terminações nervosas, dezenas de pequenas cabeças com línguas e olhos que multiplicam as capacidades perceptivas de San Domenico. Essa junção do orgânico com o inorgânico desafia a lógica da natureza, gerando um curto-circuito nas definições possíveis de vivo e morto, alto e baixo. Algumas pessoas ao meu redor cantavam a canção emitida pelos alto-falantes, que por sua vez eram alimentados pela voz do padre, um cântico de homenagem ao santo e aos seus milagres, embalando a oscilação da estátua nos ombros de seus protetores uniformizados.

A festa de San Domenico em Cocullo – miniaturização de um mistério amplo e multifacetado que alcança a civilização ocidental em suas raízes e recalques – fascinou uma série de artistas e intelectuais ao longo do tempo. Dela se ocuparam escritores como Domenico Ciampoli e Gabriele D’Annunzio, uma das principais figuras político-literárias italianas da primeira metade do século XX, além de antropólogos como Alfonso Di Nola e pintores como Francesco Paolo Michetti. Há milênios a imagem da serpente faz parte de um complexo simbolismo que articula tanto o temor diante da natureza quanto o triunfo da técnica; tanto o mistério da sexualidade como o enigma do tempo. Da serpente no Jardim do Éden, passando pela Hidra, pela Medusa e pelo deus Esculápio, até o “oroboro”, a cobra que come a própria cauda, fica evidente como esse animal está entranhado no imaginário de culturas as mais variadas, sempre fonte de uma energia ambivalente.

Na célebre conferência “O ritual da serpente”, Aby Warburg não só aponta a surpreendente recorrência desse simbolismo como também enfatiza que se trata de uma tentativa de emancipação da tirania dos sentidos: ao invés de fugir instintivamente, permanecer diante do animal, estudando formas de capturá-lo; ao invés de esgotar o sentido da experiência nas características imediatas do animal (seu veneno e seu aspecto), transformá-lo em símbolo e em festa, cujo objetivo final é o de estreitar os laços da comunidade de sobreviventes. As comunidades indígenas estudadas por Warburg (Pueblo, Oraibi e Walpi) relacionavam as serpentes aos raios e às tempestades, utilizando o ritual como forma de compreender melhor o mundo. Também em Cocullo a festa não é apenas um exercício estético com um fim em si próprio, mas uma cerimônia mágica que deve produzir um efeito real, ou melhor, uma sucessão de efeitos em cadeia: proteção dos campos, dos indivíduos, propagação da fama do santo e do povoado, fortalecimento dos laços comunitários, das categorias e dos pertencimentos. A minha presença na festa prova que esses efeitos são reais e verificáveis, algo que se intensifica quando transformo minha presença em relato.

Com o estouro dos últimos rojões, parte da multidão já está caminhando em direção à estação, para a jornada de volta. A estátua do santo já está no seu nicho no interior da igreja, assim como as relíquias, e em breve as serpentes serão devolvidas ao vale, aos seus buracos. Muitas pessoas, seja na estrada, seja dentro do trem, reproduzem com seus celulares as gravações da festa que acabaram de presenciar, como se o atestado de veracidade só pudesse ser conferido a posteriori, com o auxílio do dispositivo. Reconheço o som um pouco esganiçado dos instrumentos de sopro e, às vezes, aquela mesma canção de San Domenico que escutei na procissão, agora abafada e reduzida a um trecho de poucos segundos, disparada incontáveis vezes pelo dedo ansioso de um turista. Algumas crianças dormem, outras choram, o toque frio da serpente na pele é só mais uma lembrança. No dia primeiro de maio de 2022, um domingo, a festa se encerra e o mundo pode começar um novo ciclo.

  • Kelvin Falcão Klein é crítico literário, escritor e professor de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Uni-Rio. É autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (2023), Estratégias de visualidade na literarura: o Olho Sebald (2022), Wilcock: Ficção e arquivo (2018) e Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (2011).