Estava no hospital com o meu pai quando o saudoso doutor Guarischi entrou no quarto. Meu pai, debilitado mas lúcido, cansado mas vaidoso, disse, Thiago, pelo amor de deus, tira dessa violência horrível. Estávamos vendo alguma luta de MMA na TV. O pai não queria revelar aquele prazer secreto da família. Passamos os dias no quarto do hospital vendo TV, MMA, playoffs da NBA e leões comendo todos os outros animais, de forma a preencher o tempo tão precioso e já tão sem sentido.
Doutor Guarischi, um homem santo com habilidade sobrenatural para operar vísceras, um homem santo com pouca habilidade para dar notícias ruins, a ponto de um dia ter me dito que o pai tinha piorado como alguém com Tourette solta um palavrão fora de compasso, olhou para TV e ordenou, pode deixar aí, é muito bom ver os outros fazendo o que a gente não pode fazer.
Não é apenas por isso que gosto de MMA. Mas tem um pouco a ver com isso também. Machucar alguém violentamente é algo muito distante de mim. Poucas vezes tive vontade de socar uma pessoa. A violência bruta é sedutora. Os lutadores são sedutores. Cada um tem personalidade própria, muito bem vendida pelo UFC (a NBA do MMA). E todos sabem que tem que ser muito lelé para topar aquilo. O mundo está queimando em ódio, fogo e água, e o Trump é o cara mais celebrado no UFC, sempre na primeira fila à disposição do público e dos lutadores, há atletas supremacistas e racistas, e o Galvão Bueno chama os lutadores de gladiadores do terceiro milênio, o que francamente até por uma questão estética devia ser proibido e desliga esta TV, Thiago.
Mas eu vejo este troço e, além da alteridade, me cativa também acompanhar os treinos insanos dos lutadores, e sobretudo adoro ouvi-los explicar por que diabos fazem aquilo.
O brasileiro mais celebrado atualmente se chama Alex Pereira, o Poatan. Ele é duplo campeão, ou seja, já ganhou a categoria dos médios e do meio-pesados. Por uma casualidade, acompanho Poatan desde antes de ele entrar no UFC, quando ele estava fazendo a migração do seu esporte original, o kickboxing, para o MMA. Na entrevista em que o conheci, ele, com vocabulário brutalmente escasso e com óbvia timidez, assumia o medo que tinha ao subir no ringue e o fato de a derrota sempre ser uma possibilidade. Nunca tinha visto um lutador ser tão honesto quanto a esse fato, embora, claro, pareça óbvio o horror de perder desmontado por um único soco.
Poatan tem dificuldade em se expressar e vontade de se expressar ao mesmo tempo. Tem ambição por clareza. Odeia ironia. O seu maior rival, Israel Adesanya, nigeriano naturalizado neozelandês, um tipo meio cool, meio nerd, meio gangsta, meio playboy, uma nêmesis à altura, disse que o congelaria como em Frozen, e ele se apegou a essa provocação de um jeito singular. Pareceu perturbado. Como alguém congelaria alguém se não existe esse tipo de magia?, ele questionou em outra entrevista.
Não quero falar do Poatan como se o conhecesse, pois não o conheço. Já quis fazer um perfil dele para a Piauí, mas sei lá. Já quis fazer um ensaio sobre ele para a Piauí. Nada disso me atrai mais. Escrever assim não me atrai mais. Essa romantização do Poatan é minha, e assim eu posso seguir o texto responsavelmente.
Porque provavelmente estou vendo o que desejo ver, e projetando qualquer coisa. O fato de não conseguir enxergar nenhuma diferença entre o que Poatan diz e o que ele pensa me fascina demais. O cérebro dele é translúcido como cavalos-marinhos recém-nascidos, como uma membrana placentária, daí, talvez, o esforço de se fazer entender. Não há vontade de codificação nem condição de decodificação, muito pelo contrário, o desejo maior parece ser o de oferecer exatamente aquilo que se pensa. E de alguma forma o Poatan erra muito pouco no que fala. Tem sempre uma sabedoria como ter medo, uma posição diante do mundo como não tolerar ironia. Numa entrevista ele assumiu ser impossível, apesar de morar há alguns anos nos Estados Unidos, falar inglês.
A sinceridade vulnerável e a frustração de quem “não consegue”.
Seria um cara legal e um bom personagem e tudo o mais, mas nada disso faria sentido caso Poatan não fosse um lutador em um milhão. O que sei de luta vem de ver muita luta, nunca lutei de fato, então falo do que já entendi: Poatan chuta sem girar o quadril, o que aparentemente é muito heterodoxo, tem uma base alta, esbelta mas ao mesmo tempo desajeitada, deixa a guarda mais baixa do que o indicado, tem um cruzado de esquerda curto e rápido, o soco de dez centímetros, como dizem os especialistas, um soco que vem como um golpe de ar sem alavanca, um soco que apelidaram de toque da morte. O jogo do Poatan é sempre o mesmo, fácil de ler, e aqui já é possível prever a analogia com o modo como ele pensa-fala: chutes-facão na perna, até impossibilitar o sujeito de andar, soco no corpo, chute no corpo, fazer o adversário se preocupar em resguardar as pernas, o fígado, o rim, o coração, ir baixando a guarda, expondo a cabeça pouco a pouco até pow, cruzado ou chute alto na cabeça vulnerável, já que as mãos, antes em guarda alta, foram condicionadas a baixar de minuto a minuto.
Soma-se ao personagem o fato de Poatan ter começado a lutar com vinte e poucos anos com a única finalidade de encontrar uma atividade que o fizesse parar de beber. Antes trabalhava numa borracharia. Ele afirma que foi campeão brasileiro de kickboxing bebendo, às vezes, um litro de cachaça por dia. Até que um treinador de origem indígena o perguntou se ele, Alex Pereira, não tinha ascendência indígena. No outro dia voltou para academia dizendo que os pais tinham avós indígenas. Pronto. O treinador quis torná-lo índio. E Alex, numa medida extrema para se salvar do álcool e para mudar a mentalidade derrotista, passou semanas isolado em meio a rituais com o treinador até se transformar no Poatan, em tupi-guarani “mão forte”, ou “mão de pedra”. Soa aqui como um lance meio marqueteiro à primeira vista, mas Poatan assumiu essa identidade de tal modo que depois da transformação foi campeão de tudo em sua modalidade, derrotando duas vezes o então talentosíssimo Adesanya no kickboxing. Em suas aparições para as lutas, passou a usar uma das músicas que o Sepultura gravou com os xavantes em 1996 no disco Roots. Ele caminha numa dança ritualística que emula com as pernas tanto passos indígenas quanto o avanço num combate, mãos fazendo guarda, pisadas arrastadas e firmes, e em dado momento para, puxa um arco e flecha imaginário, solta a flecha em direção ao ringue ao mesmo tempo que emite um grito gutural. Depois dá uma sequência de três socos e volta a caminhar. É intenso. Hoje é a entrada mais famosa de um lutador de arte marcial no mundo.
Poatan criou esse troço. Logo, conheceu um dos líderes pataxós do sul da Bahia, e passou a frequentar a tribo. Hoje é como se ele fosse um pataxó. Antes da luta, nas encaradas, se pinta como um guerreiro e usa adereços feitos pelos pataxós. Estou indo para a guerra, ele explica.
Na encarada já dentro do ringue, ou do octógono, fica estático e sério, sério demais, estático demais, o que faz com que se pareça muito com uma estátua moai, aquelas famosas cabeças angulosas da Ilha de Páscoa. O emoji dessa cabeça virou, inclusive, símbolo do Poatan. Um adversário tentou provocá-lo entrando na coletiva de imprensa pré-luta de uma forma totalmente sem noção e cafona com uma cabeça moai manchada de vermelho-sangue e quebrada. Na luta entre eles, Poatan tomou um golpe baixo e, em vez de permitir que o juiz interrompesse o embate para que ele se recuperasse, afastou o árbitro sem tirar o olho do adversário, num dos movimentos mais famosos do ano na modalidade, feito um “sem tempo, irmão, tenho que acabar logo com isso”, ganhou um centímetro e cortou um pouco o ângulo, o suficiente para dois segundos depois acontecer o toque da morte. Quando a luta terminou, debochou do oponente desfalecido num gesto-meme. A única vez que fez isso no MMA. Poatan se sentiu ofendido com a cena da cabeça moai.
“Antes da palhaçada, ele [o adversário] tinha sido educado comigo, pediu que eu autografasse uma camisa, não entendi por que ele fez aquilo”, Poatan disse após a luta.
A história do Poatan no UFC tem um fio condutor essencial, seu rival Adesanya. Numa entrevista, já supercampeão do UFC, Adesanya disse não se importar com o fato de ter perdido para Poatan no kickboxing, pois este, no futuro, estaria num bar com amigos dizendo que uma vez ganhou da lenda Adesanya, enquanto ele, Adesanya, nunca mais veria uma luta do Poatan. Embora seja difícil acreditar na simplicidade do desafio, é boa a narrativa de que Poatan viu aquilo e se sentiu compelido a abandonar sua modalidade e perseguir Adesanya no MMA. E foi o que aconteceu, numa luta épica em que Poatan, perdendo no quinto e último round, falou para si mesmo “pronto para matar”, uma paráfrase do que o próprio Adesanya tinha dito em uma luta anterior, “i’m prepared to die”.
Que presença de espírito maluca.
Depois do nocaute, Poatan citou a entrevista de Adesanya.
Na última luta de Poatan, o seu adversário, um cara muito doido que se vê como samurai e hiberna em montanhas gélidas e jejua e não toma água e vai para a arena na véspera da luta às duas da manhã mentalizar, pediu que Poatan deixasse as magias fora do ringue, que lutasse a luta dos homens, e não se valesse dos rituais xamânicos. O mundo do MMA explorou demais a declaração. Poatan foi um lorde. Disse que o mesmo deus que o abençoa é o deus que nos protege, algo assim, um lance bonito de comunhão cósmica que depois percebi, assistindo ao canal de YouTube do Poatan, ter sido soprado por seu mentor e amigo, o ex-lutador Glover Teixeira. Aliás, o canal de YouTube do Poatan é um caso à parte, com uma pegada de cinema direto bastante inusitada para a modalidade.
Foi a melhor atuação de Poatan no MMA. No vídeo que vazou de ambos se encontrando no aeroporto, no dia seguinte, ele fez questão de reiterar que não tinha nada de magia em sua crença, e pediu que o amigo traduzisse isso ao adversário.
Poatan pede que tudo o que fala seja traduzido, e precisa que tudo o que falam para ele seja traduzido. Ainda assim, se sentiu à vontade para criar uma gíria palavra-ônibus e usá-la com os estrangeiros com quem convive. “Chama”.
Ele olha para a pessoa e diz: “Chama ou não chama?”. E a pessoa tem que responder “chama”, ou “claro que chama”. É isso.
E isso se tornou uma febre, a palavra do ano no MMA. Ele entra no ringue e pessoas de todas as nacionalidades gritam “Chama, chama, chama”.
Poatan adotou também o foguinho, a chama, como emoji.
Os comentaristas gringos da ESPN perguntam a ele o que quer dizer, e ele ora tenta explicar que é um let’s go ora, como prefiro, diz que pode ser qualquer coisa.
Poatan incutiu essa gíria estranhíssima entre os estrangeiros.
Cinco páginas de Word sobre o Poatan se foram.
Em minha defesa, posso dizer que um caro amigo, escritor premiado, também ama MMA, mas se aventura a apenas escrever sobre boxe. O João Gilberto também gostava de MMA. Tem o muito bem falado A grande luta, livro sobre este universo. E o Caetano fez aquela música em que enumera um monte de lutador. Mas é o Caetano. Sem ironia. 🗿 🔥
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- Thiago camelo é poeta e ficcionista, autor de “Dia um” (Companhia das letras, 2022) e “descalço nos trópicos sobre pedras portuguesas” (nóS, 2017). texto Publicado originalmente no substack do autor