REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

Desafeto canta – David Bernat

A LEI DO VERÃO

Apenas uma linha entre a capital

e a cidade onde eu nasci.

A estrada na planície

entre as praias e o grande nada.

O vento frio, sobre a noite, faz

parar o tempo. E o tempo

vomita febre sobre o campo:

devagar, esse aspecto de presença

retira-se do instante.

Estudo para uma chave

Dentro do cubículo de metal,
na calçada e perto das flores,
o chaveiro vê o bairro ―
e as formas ainda estão intactas,
reluzindo na madeira.

Com cuidado, as mãos
familiares ao frio,
destroem aos poucos a antiga totalidade
e, através das janelas na estrutura livre,
eu posso ouvir num prédio ― um suspiro
uma porta que se abre.

A CASA

A casa antiga, as paredes brancas.

A restinga, a areia branca.

Tinha um quadro na sala,

uma cena, na frente da janela oposta:

o mar estático, uma árvore sozinha

na paisagem aberta. Por que que a vida

às vezes, para viver, se esconde

no lugar mais claro e mais plano?

O quadro era uma janela para a eternidade.

A janela era um quadro para o movimento.

LAMENTO PELO PÁSSARO

Entrou um pássaro no salão

de jogos, mergulhando

na mesa de sinuca.

Atônito, se chocava com força

nas grandes janelas do alto.

Quando veio ao chão, arfando

parecia ilustrar o enigma:

pois queria ― jovem ânsia ―

encarnando grande violência

e voando, entender a assustada

e frágil beleza humana.

O PROFETA

O coração inquieto pergunta

ao rever a cidade concreta:

estão juntas gentileza e paranóia?

Como sirenes de aviso,

responde a bruma:

a gentileza se vende

a paranóia se compra.

IMAGEM Nº5

Desafeto canta, oh pássaro vermelho,

ou que tua leve pena

me afague o rosto sujo.

Nos galhos pálidos de espanto,

uma forma passa no canto do meu olho.

Se a gente olha ― ela se foi.

Eu me lembro quando um touro

veio com a maré

(seu corpo fez-se da espuma).

Seguindo a avenida,

ele sumiu na cidade.

Por que que eu tenho essa vontade:

enfiar um braço na boca do leão,

abrir meu punho no estômago,

sentir o que seria morrer de verdade?

Eu queria me afastar do Imperador

que vaga pelas costas, pelo campo,

perguntando à gente, seus súditos,

o nome dos montes,

o nome das aves,

o nome das serras,

que acaso alguém fez suas.

Essa sensação confusa, certo rubor na pele.

Sozinho, apesar das estrelas ―

falsa ausência de estrelas

Essa sensação violenta: parte dessa riqueza,

eu venho desse mundo belo.

Desse mundo belo: sensação violenta,

que agora, forma sem imagem,

― violinos em repouso ―

me pede para inventá-la.

  • David Bernat nasceu em Naviraí (MS) em 1997. é aluno do curso de graduação em Língua Portuguesa-Literaturas da Faculdade de Letras da UFRJ. Poemas extraídos do livro inédito Leveza