Desmontamos a casa do meu pai antes da minha viagem. Doamos a cadeira de rodas para um hospital, foi o mais fácil. O outro era mais difícil, tinha que ser doado para nós. Eu levo a chaleira, você o fogão. Dividir uma casa em quatro partes. Colocamos seus livros em caixas e dimos os de medicina. Quando menina eu brincava olhando aqueles manuais, o que eu gostava era do brilho do branco das folhas: ali podiam aparecer partes de corpos. Olhava os livros e brincava de médico desenhando órgãos em papelão. Às vezes eu gostaria de ter ficado com a cadeira, levá-la para passear na minha nova casa ou na praia, sentir o som do vento na tela. Lhe dizer, olha, olha, agora eu moro aqui!
Cuánto cuesta aprender una lengua?
tres trabajos
la disposición de las cosas
en un monoambiente
un mes yendo
todos los días todos los días todos los días
al mercado
-ahí estaba Brasil-,
Princesa,
y gastar lo mínimo.
En la economía de la lengua
quedaron
las cenizas y el ritual
la transacción
de despedir
lo que quedaba del
cuerpo paterno
desde lejos
-eran 4 menos 1-
para escribir una ciudad abierta
a media lengua: mía.
Borradores
resúmenes del Banco do Brasil:
lo que sale de la beca
lo que sobra de traducir
audioguías y aplicativos
-la cuenta que no cierra-
Cuánto cuesta la lengua?
Quanto custa aprender uma língua?
três empregos
o arranjo das coisas
numa kitnet
um mês indo
todos os dias todos os dias todos os dias
para o mercado
-ali estava o Brasil-,
Princesa,
e gastar o mínimo.
Na economia da lingua
ficaram
as cinzas e o ritual
a transação
de dizer adeus
o que sobrou
do corpo paterno
de longe
-eram 4 menos 1-
escrever uma cidade aberta
à meia língua: minha.
Rascunhos
resumos do Banco do Brasil:
o que sai da bolsa
o que resta da tradução
guias de áudio e aplicativos
-a conta que não fecha-
Quanto custa a lingua?
Hay escrituras que se me vuelven difíciles
Y agarro cuadernos
hojas sueltas
las notas del celular
y escribo frases y párrafos
que tacho
o dejo ahi
porque lo que quiero hilvanar
no es nada
que pueda ser imaginado
de nuevo
sino fragmentos
que lo único que tienen en común
son dos personas que empiezan
en el borde de una cama
o en la frontera de dos lenguas
o en una conversación rota
de la que quedan tres o cuatro cosas
intercambiables según se suceda
el cotidiano pero que
salvando algunos detalles
siempre toman el contorno
negro de las mosquitas
de fruta
que nacen de las bananas
que dejo en mi casa
de viernes a viernes
sobrevuelan la yerba tibia
del mate
y se detienen en mis piernas
debajo de la ducha
con el agua
Há escritas que se tornam difíceis
e pego cadernos
folhas soltas
notas do celular
e escrevo frases e parágrafos
que risco
ou deixo aí
porque o que eu quero amarrar
não é nada
que possa ser imaginado
de novo
mas fragmentos
que a única coisa que têm em comum
são duas pessoas que começam
na beira de uma cama
ou na fronteira de duas línguas
ou em uma conversa quebrada
da que ficam três ou quatro coisas
Intercambiaveis conforme se suceda
o cotidiano, mas
que salvando alguns detalhes
sempre seguem o contorno
preto das mosquinhas
de fruta
que nascem das bananas
que deixo na minha casa
de sexta a sexta
sobrevoam a herva mate morna
do chimamarrão
e pousam nas minhas pernas
debaixo do chuveiro
com a água
ainda caindo
molhadas.
(Tradução da autora revisada por Eduardo Coelho)
I.
Cuando volví de Brasil
la primera vez
me acuerdo
mamá sentada en el borde
de mi cama
abrí los ojos y la pude distinguir
ya agarraba mi mano:
se habían cumplido los cinco años
de papá en el cementerio
con ella tocándome yo casi dormida
apenas de visita
pero necesitada `
firmar para mover la tierra descavar
prender el fuego.
Fuimos al cementerio
juntas
la quise agarrar del brazo como se sostiene a una vieja
no me dejó, se deslizó simple
fue ella la que me llevó
con el dedo enseñaba cada tumba
las flores
el olor
que volvía del ritual
el trámite por hacer
como si yo no hubiese ido nunca, recién llegada, recién nacida.
II.
Después de ceder el cuerpo de papá
a mi nombre
mamá me avisa
por mensaje que ya estaba todo hecho
por años, después de sacarlo del cementerio,
guardó las cenizas y decidió por fin
tirarlas
a la distancia me cuenta los detalles
con mis hermanos eligieron
el parque del barrio
el árbol
un poco acá, un poquito más allá
lo esparcieron como alguien que domina o compra un terreno
con el esfuerzo de años
y dice esto es mío.
III.
El polvo del cuerpo de mi papá estaba
y yo nunca lo vi
¿las rodillas habrán estado detrás del sillón?
¿los hombros entre los pelos que se acumulan en las patas de las sillas?
¿mamá lo fue juntando de a poco el día en que decidió
llamar a mis hermanos
despedirlo en el parque?
Sé que en realidad fue una distracción mía
volvía a lo que creía conocido
el departamento de mamá, mi cama, mi pieza
y sin embargo nunca supe
del rincón exacto en donde se encontraba la materia de
mi duelo.
IV.
De haber sabido
la caja la lata la urna
abierta
mi mano en las cenizas
como arena tibia
los granos separados, escurridizos
de haber sabido
agarrar un montoncito dejar
que se deslice en mi palma, en el extremo de los dedos
así hasta
calcular el peso de lo que fue su cuerpo
grande y robusto en mi infancia
después
tambaleante
algo frágil y delicado
que caía y yo
agarraba del brazo, empujaba fuerte hacía mi
a veces desnudo
su sexo y su enfermedad
todo eso que lo hacía el hombre que era y no otro.
Más flaco, más chiquito.
Aquel que podría levantar del suelo
ahora de la caja la lata la urna
un cuerpo poco pero
qué importaba sin con un
montoncito
alcanzaba para sostenerlo.
I.
Quando voltei do Brasil
a primeira vez
me lembro
mamãe sentada na beira
da minha cama
abri meus olhos e pude vê-la
já pegava minha mão:
cinco anos se passaram
do papai no cemitério
com ela me tocando eu quase dormindo
apenas de visita
mas necessitada
assinar para mover a terra descavar
acender o fogo.
Fomos ao cemitério
juntas
queria agarrá-la pelo braço como se segura uma velha
não me deixou, se escorregou simples
foi ela quem me levou
com o dedo mostrou cada túmulo
as flores
o cheiro
voltando do ritual
o trâmite a ser feito
como se eu nunca tivesse estado ali, recém-chegada, recém-nascida.
II.
Depois de transferir o corpo do pai
ao meu nome
mãe me avisa
por mensagem que tudo já estava feito
durante anos, depois de tirá-lo do cemitério,
ela guardou as cinzas e finalmente decidiu
jogá-las fora
à distância me conta os detalhes
com meus irmãos escolheram
o parque do bairro
a árvore
um pouco aqui, um pouquinho mais ali
o espalharam como quem domina ou compra um terreno
com o esforço de anos
e diz isto é meu.
III.
O pó do corpo do meu pai estava
e eu nunca vi
os joelhos ficaram atrás do sofá?
os ombros entre os pelos que se acumulam nos pés das cadeiras?
mãe foi montando tudo aos poucos no dia em que decidiu
ligar para meus irmãos
dizer adeus a ele
no parque?
sei que na verdade foi minha distração
voltava para o que achava conhecido
o apartamento da mãe, minha cama, meu quarto
e ainda assim nunca soube
do canto exato onde se encontrava a matéria
do meu luto.
IV.
De ter sabido
a caixa a lata a urna
aberta
minha mão nas cinzas
como areia quente
os grãos separados e escorregadios
de ter sabido
pegar um punhado
deixá-lo deslizar na palma da minha mão, na ponta dos meus dedos
assim até
calcular o peso do que foi seu corpo
grande e robusto na minha infância
depois
trêmulo
algo frágil e delicado
aquele que caía e eu
agarrava no braço, empurrava com força em minha direção
às vezes nu
seu sexo e sua doença
tudo isso que fazia dele o homem que era e não outro.
Mais magro, menor.
Aquele que poderia levantar do chão
agora da caixa a lata a urna
um corpo pouco mas
o que importava se
um punhado
era suficiente para segurá-lo.
(Tradução da autora revisada por Eduardo Coelho)
- Lucía González nasceu em la plata, argentina, em 1986. doutora em Letras pela UFRJ, pesquisa a obra de João do Rio, em especial os vínculos do escritor carioca com a literatura hispanoamericana.Participou da tradução para o espanhol do Indicionário do contemporâneo (Editora UFMG, 2018), editado na argentina pela EME.