REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

Desmontamos a casa do meu pai – Lucía González

Desmontamos a casa do meu pai antes da minha viagem. Doamos a cadeira de rodas para um hospital, foi o mais fácil. O outro era mais difícil, tinha que ser doado para nós. Eu levo a chaleira, você o fogão. Dividir uma casa em quatro partes. Colocamos seus livros em caixas e dimos os de medicina. Quando menina eu brincava olhando aqueles manuais, o que eu gostava era do brilho do branco das folhas: ali podiam aparecer partes de corpos. Olhava os livros e brincava de médico desenhando órgãos em papelão. Às vezes eu gostaria de ter ficado com a cadeira, levá-la para passear na minha nova casa ou na praia, sentir o som do vento na tela. Lhe dizer, olha, olha, agora eu moro aqui!


Cuánto cuesta aprender una lengua?

tres trabajos

la disposición de las cosas

en un monoambiente

un mes yendo

todos los días todos los días todos los días

al mercado

-ahí estaba Brasil-,

Princesa,

y gastar lo mínimo.

En la economía de la lengua

quedaron 

las cenizas y el ritual

la transacción

de despedir

lo que quedaba del

cuerpo paterno

desde lejos

-eran 4 menos 1-

para escribir una ciudad abierta

a media lengua: mía.

Borradores

resúmenes del Banco do Brasil:

lo que sale de la beca

lo que sobra de traducir

audioguías y aplicativos

-la cuenta que no cierra-

Cuánto cuesta la lengua?

Quanto custa aprender uma língua?

três empregos

o arranjo das coisas

numa kitnet

um mês indo

todos os dias todos os dias todos os dias

para o mercado

-ali estava o Brasil-,

Princesa,

e gastar o mínimo.

Na economia da lingua

ficaram

as cinzas e o ritual

a transação

de dizer adeus

o que sobrou

do corpo paterno

de longe

-eram 4 menos 1-

escrever uma cidade aberta

à meia língua: minha.

Rascunhos

resumos do Banco do Brasil:

o que sai da bolsa

o que resta da tradução

guias de áudio e aplicativos

-a conta que não fecha-

Quanto custa a lingua?


Hay escrituras que se me vuelven difíciles

Y agarro cuadernos

hojas sueltas

las notas del celular

y escribo frases y párrafos

que tacho

o dejo ahi

porque lo que quiero hilvanar

no es nada

que pueda ser imaginado

de nuevo

sino fragmentos

que lo único que tienen en común

son dos personas que empiezan

en el borde de una cama

o en la frontera de dos lenguas

o en una conversación rota

de la que quedan tres o cuatro cosas

intercambiables según se suceda

el cotidiano pero que

salvando algunos detalles

siempre toman el contorno

negro de las mosquitas

de fruta

que nacen de las bananas

que dejo en mi casa

de viernes a viernes

sobrevuelan la yerba tibia

del mate

y se detienen en mis piernas

debajo de la ducha

con el agua

Há escritas que se tornam difíceis

e pego cadernos

folhas soltas

notas do celular

e escrevo frases e parágrafos

que risco

ou deixo aí

porque o que eu quero amarrar

não é nada

que possa ser imaginado

de novo

mas fragmentos

que a única coisa que têm em comum

são duas pessoas que começam

na beira de uma cama

ou na fronteira de duas línguas

ou em uma conversa quebrada

da que ficam três ou quatro coisas

Intercambiaveis conforme se suceda

o cotidiano, mas

que salvando alguns detalhes

sempre seguem o contorno

preto das mosquinhas

de fruta

que nascem das bananas

que deixo na minha casa

de sexta a sexta

sobrevoam a herva mate morna

do chimamarrão

e pousam nas minhas pernas

debaixo do chuveiro

com a água

ainda caindo

molhadas.

(Tradução da autora revisada por Eduardo Coelho)


I.

Cuando volví de Brasil

la primera vez

me acuerdo

mamá sentada en el borde

de mi cama 

abrí los ojos y la pude distinguir 

ya agarraba mi mano: 

se habían cumplido los cinco años 

de papá en el cementerio

con ella tocándome yo casi dormida

apenas de visita

pero necesitada `

firmar para mover la tierra descavar

prender el fuego. 

Fuimos al cementerio

juntas

la quise agarrar del brazo como se sostiene a una vieja

no me dejó, se deslizó simple

fue ella la que me llevó

con el dedo enseñaba cada tumba

las flores

el olor 

que volvía del ritual

el trámite por hacer

como si yo no hubiese ido nunca, recién llegada, recién nacida.

II.

Después de ceder el cuerpo de papá 

a mi nombre 

mamá me avisa

por mensaje que ya estaba todo hecho

por años, después de sacarlo del cementerio, 

guardó las cenizas y decidió por fin

tirarlas

a la distancia me cuenta los detalles

con mis hermanos eligieron 

el parque del barrio

el árbol

un poco acá, un poquito más allá

lo esparcieron como alguien que domina o compra un terreno

con el esfuerzo de años

y dice esto es mío.

III.

El polvo del cuerpo de mi papá estaba 

y yo nunca lo vi 

¿las rodillas habrán estado detrás del sillón? 

¿los hombros entre los pelos que se acumulan en las patas de las sillas?

¿mamá lo fue juntando de a poco el día en que decidió

llamar a mis hermanos 

despedirlo en el parque?

Sé que en realidad fue una distracción mía

volvía a lo que creía conocido

el departamento de mamá, mi cama, mi pieza

 y sin embargo nunca supe

del rincón exacto en donde se encontraba la materia de

mi duelo.

IV.

De haber sabido

la caja la lata la urna

abierta 

mi mano en las cenizas

como arena tibia

los granos separados, escurridizos

de haber sabido

agarrar un montoncito dejar 

que se deslice en mi palma, en el extremo de los dedos

así hasta 

calcular el peso de lo que fue su cuerpo

grande y robusto en mi infancia

después

tambaleante

algo frágil y delicado

que caía y yo  

agarraba del brazo, empujaba fuerte hacía mi

a veces desnudo 

su sexo y su enfermedad

todo eso que lo hacía el hombre que era y no otro.

Más flaco, más chiquito.

Aquel que podría levantar del suelo 

ahora de la caja la lata la urna

un cuerpo poco pero

qué importaba sin con un 

montoncito 

alcanzaba para sostenerlo.

I.

Quando voltei do Brasil

a primeira vez

me lembro

mamãe sentada na beira

da minha cama

abri meus olhos e pude vê-la

já pegava minha mão:

cinco anos se passaram

do papai no cemitério

com ela me tocando eu quase dormindo

apenas de visita

mas necessitada

assinar para mover a terra descavar

acender o fogo.

Fomos ao cemitério

juntas

queria agarrá-la pelo braço como se segura uma velha

não me deixou, se escorregou simples

foi ela quem me levou

com o dedo mostrou cada túmulo

as flores

o cheiro

voltando do ritual

o  trâmite a ser feito

como se eu nunca tivesse estado ali, recém-chegada, recém-nascida.

II.

Depois de transferir o corpo do pai

ao meu nome

mãe me avisa

por mensagem que tudo já estava feito

durante anos, depois de tirá-lo do cemitério,

ela guardou as cinzas e finalmente decidiu

jogá-las fora

à distância me conta os detalhes

com meus irmãos escolheram

o parque do bairro

a árvore

um pouco aqui, um pouquinho mais ali

o espalharam como quem domina ou compra um terreno

com o esforço de anos

e diz isto é meu.

III.

O pó do corpo do meu pai estava

e eu nunca vi

os joelhos ficaram atrás do sofá?

os ombros entre os pelos que se acumulam nos pés das cadeiras?

mãe foi montando tudo aos poucos no dia em que decidiu

ligar para meus irmãos

dizer adeus a ele

no parque?

sei que na verdade foi minha distração

voltava para o que achava conhecido

o apartamento da mãe, minha cama, meu quarto

e ainda assim nunca soube

do canto exato onde se encontrava a matéria

do meu luto.

IV.

De ter sabido

a caixa a lata a urna

aberta

minha mão nas cinzas

como areia quente

os grãos separados e escorregadios

de ter sabido

pegar um punhado

deixá-lo deslizar na palma da minha mão, na ponta dos meus dedos

assim até

calcular o peso do que foi seu corpo

grande e robusto na minha infância

depois

trêmulo

algo frágil e delicado

aquele que caía e eu

agarrava no braço, empurrava com força em minha direção

às vezes nu

seu sexo e sua doença

tudo isso que fazia dele o homem que era e não outro.

Mais magro, menor.

Aquele que poderia levantar do chão

agora da caixa a lata a urna

um corpo pouco mas

o que importava se

um punhado

era suficiente para segurá-lo.

(Tradução da autora revisada por Eduardo Coelho)

  • Lucía González nasceu em la plata, argentina, em 1986. doutora em Letras pela UFRJ, pesquisa a obra de João do Rio, em especial os vínculos do escritor carioca com a literatura hispanoamericana.Participou da tradução para o espanhol do Indicionário do contemporâneo (Editora UFMG, 2018), editado na argentina pela EME.