REVISTA ESTUÁRIO

Um experimento editorial criado e realizado por alunxs e professorxs da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Delta do Amazonas. Foto: ESA

O lugar da ferida – Alejandra Pizarnik

Tradução de Marina Ivo de Araujo Lima

POEMA
Você escolhe o lugar da ferida
onde falamos de nosso silêncio.
Você faz de minha vida
essa cerimônia demasiado pura.

POEMA

Tú eliges el lugar de la herida
en donde hablamos nuestro silencio.
Tú haces de mi vida
esta ceremonia demasiado pura.


FESTA

Desdobrei minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o itinerário
até o meu lugar ao vento.
Quem chega não me encontra.
Quem espero não existe.

E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em taças vazias.

FIESTA

He desplegado mi orfandad
sobre la mesa, como un mapa.
Dibujé el itinerario
hacia mi lugar al viento.
Los que llegan no me encuentran.
Los que espero no existen.

Y he bebido licores furiosos
para transmutar los rostros
en un ángel, en vasos vacíos.


SENTIDO DE SUA AUSÊNCIA

Se eu me atrevo
a olhar e a dizer
é pela sua sombra
unida tão suave
ao meu nome
lá longe
na chuva
na minha memória
do seu rosto
que ardendo em meu poema
dispersa lindamente
um perfume
do amado rosto desaparecido

SENTIDO DE SU AUSENCIA

Si yo me atrevo
a mirar y a decir
es por su sombra
unida tan suave
a mi nombre
allá lejos
en la lluvia
en mi memoria
por su rostro
que ardiendo en mi poema
dispersa hermosamente
un perfume
a amado rostro desaparecido


SILÊNCIOS

A morte sempre ao lado.
Escuto seu dizer.
Só me ouço.

SILENCIOS

La muerte siempre al lado.
Escucho su decir.
Sólo me oigo.


Vizinhança

Marina Ivo de Araujo Lima

Abuela” foi a primeira palavra que aprendi em espanhol. Ela, a abuela, andava sempre penteadíssima, com as unhas pintadas de vermelho escarlate, vestido estampado, segurando sua bengala com a ponta dourada. Nunca sabia quem éramos e onde ela mesma estava. Às vezes acordava de madrugada e dizia que estava indo embora para a sua casa.

Eu a conheci quando tinha dez anos. À época, ela já tinha noventa anos, a mesma idade com a qual faleceu vinte anos depois. No seu velório, fomos todos nos despedir dessa figura inesquecível e onipresente na nossa infância, adolescência e juventude. Eu e Lulu íamos para a piscina e a abuela estava pegando sol no banco perto do parquinho, entrávamos e saíamos de casa para o balé, o inglês, a escola. Lá estava a abuela. Às vezes, ela contava histórias, às vezes perdia o olhar do mundo.

Sem saber, ela foi a minha primeira professora de espanhol. À mesa, me perguntava:  “¿Linda, quieres una manzana?”. Uma, duas, três, dez vezes. Eu respondia educadamente “No, gracias, abuela”. A Lulu e o Mariano ficavam muito chateados com a insistência do seu esquecimento. Mas, enfim, se ela não sabia nem quem éramos, imagina se lembraria que acabou de me oferecer uma manzana? Então, ela seguia me oferecendo, eu seguia rejeitando porque nunca achei, de fato, que maçã era sobremesa.

Eu e Lulu travávamos discussões acaloradas sobre as duas línguas. Não existe “mais pequeno e mais grande”. Está errado. Existe sim, minha mãe fala. Sua mãe é argentina, o que para a Tia Alicia – que todos os anos desfilava na Portela, é rata de praia e mais carioca que muita gente que nasceu no Rio – poderia ser considerado uma ofensa. A Lulu não deixava barato. Quando eu comentava que o irmão da abuela era major, um sujeito de quepe e abotoadura dourada, ela ria na minha cara. Mayor, mais velho, entendeu? Não tem nada a ver com o exército.

Se a Lulu não tivesse chegado na minha vida, talvez eu não teria decidido estudar espanhol durante a adolescência logo quando voltamos da minha primeira viagem a Buenos Aires. Talvez eu não teria lido com tanto apaixonamento Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia Marquez, Isabel Allende, Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa. Talvez eu não passaria tardes de domingo ouvindo Fito Páez, Julieta Parra, Mercedes Sosa.

O castelhano para mim não é só uma língua, é uma segunda casa, uma segunda família que me adotou e que eu adotei também. É uma língua com seus sabores próprios: panqueca de doce de leite, alfajor e torta pascualina.

Esses poemas acima são minhas primeiras traduções feitas sem nenhum compromisso, em uma tarde chuvosa, rabiscando a lápis no próprio livro. São da poeta argentina Alejandra Pizarnik, cuja poesia completa comprei em uma viagem para o Uruguai. Traduzi quatro poemas: “Poema”, “Fiesta”, “Sentido de su ausência” e “Silencios”, todos da obra Los Trabajos y las noches (1965). Esse livro foi publicado logo depois de uma temporada de quatro anos em Paris, onde conviveu com figuras como Julio Cortázar e Octavio Paz, este último assina o prólogo de Arból de Diana (1962). No Brasil, “O Trabalho e as noites” foi publicado pela Editora Relicário, com tradução de Davis Diniz e prólogo de Ana Martins Marques. 

  • Alejandra Pizarnik (1936-1972), poeta, pintora, tradutora e ensaísta argentina, nasceu em Buenos Aires, onde fez cursos de filosofia e literatura, mas interrompeu os estudos universitários para se dedicar inteiramente à literatura. Viveu de 1960 a 1964 em Paris, onde se aproximou de autores como Silvina Ocampo, Julio Cortázar e Octavio Paz, e traduziu obras de Henri Michaux e Aimé Cesaire, entre outros. Entre seus livros, estão: La tierra más ajena (1955), La última inocencia (1956), Las aventuras perdidas (1958), Árbol de Diana (1960), Extracción de la piedra de locura (1968) e El infierno musical (1971).
  • Marina Ivo de Araujo Lima é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, onde defendeu a dissertação de mestrado Caixa de Viagem e a tese Slam das Minas RJ: cenas e crônicas de uma escuta. Dá aulas particulares e em grupo de escrita e literatura, e Organiza o projeto Passeio Literário na Pequena África, uma aula-imersão pela Gamboa que relaciona os apagamentos sofridos na região com os apagamentos que ocorrem também no campo literário. Marina é autora dos livros Guia de Ateliês de Moda do Rio de Janeiro e do infantil O Menino com um buraco na barriga.