O conto “A casa de Astérion”, de Jorge Luis Borges, chegou para mim em um momento de muita solidão. Em uma madrugada, por volta de dois anos do marco da reabertura pós-pandemia, o texto cruzou meu caminho. É de uma curiosa sorte de senso de humor borgiano que a minha primeira leitura do texto tenha sido em inglês: as palavras de Teseu, que aparece apenas no final da narrativa, traduzidas para “The Minotaur scarcely defended himself”. O caráter trágico do protagonista passou a ocupar meus pensamentos e a ternura contida no exercício de desconstrução da figura do monstro mítico se tornou um acalento para minha solidão. Pois, assim como Astérion, eu havia ficado confinada em minha casa e assim como ele acabei descobrindo que “Assim como as pessoas existem labirinto adentro, o labirinto existe dentro das pessoas.[1]” (TINLEY, 2012. p. 52)
O relato de Astérion ocupa a maior parte do conto e consiste em descrever três aspectos da sua existência:
1- Como ele ocupa seu tempo e seu espaço nas galerias do labirinto.
Não imaginei apenas essas brincadeiras; também meditei sobre a casa. Todas as partes da casa se repetem muitas vezes; todo lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são catorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, de tanto exaurir pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de pedra cinza, cheguei à rua e vi o templo dos Machados e o mar. Isso não entendi, até que uma visão da noite me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo se repete muitas vezes, catorze vezes, mas há duas coisas no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a casa enorme, mas já não me lembro. (BORGES, 1972. p. 53)
2- Como ele percebe a si e aos outros sabendo ser diferente de todas as criaturas.
O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir aos demais; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As minúcias desagradáveis e banais não têm cabida em meu espírito, que está preparado para o grande; jamais retive a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não permitiu que eu aprendesse a ler. Às vezes lamento, porque as noites e os dias são compridos. (BORGES, 1972. p. 52)
3- Como ele faz sentido de sua existência através da violência, a única forma de contato com outros seres que conhece.
A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os livre de todo mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a seu encontro. A cerimônia dura poucos minutos. Cai um depois do outro sem que eu ensanguente as mãos. Onde caem, ficam, e os cadáveres ajudam a diferenciar uma galeria das outras. (BORGES, 1972. p. 53)
O relato acaba ainda afirmando essa significação que Astérion faz do mundo a partir da violência, pois é a partir do fato de que um homem virá o redimir, assim como ele redimiu a tantos, que ele tece para si uma paz existencial.
Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde aquele momento não sofro com a solidão, porque sei que meu redentor existe e no fim se levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os ruídos do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor?, pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu? (BORGES, 1972. p. 53)
Apesar da epígrafe se configurar como uma pista, a revelação da identidade do Minotauro só ocorre no final do conto, onde o relato dá espaço para um diálogo mínimo, mais especificamente uma fala de Teseu para Ariadne. Cito o texto original, em espanhol: “El Sol de la mañana reverberó en la espada de bronce. Ya no quedaba ni un vestigio de sangre. -¿Lo creerás, Ariadna? -dijo Teseo-. El minotauro apenas se defendió.” (BORGES, 2001. p. 54)
A simplicidade com a qual são revelados a identidade e o destino do minotauro são provenientes de um jogo entre clareza e obscuridade: a evocação dos nomes míticos e da imagem da espada com sangue permitem que ela ocorra em poucas palavras. Palavras como “morte” ou “luta” sequer chegam a ser utilizadas.
Nesta última passagem, uma brecha na linguagem me desconcerta: o advérbio “apenas” em espanhol possui o significado simultaneamente de “somente” e “sequer”/”quase não”. Em uma nota de rodapé, Borges nos adverte, sem explicação posterior, que para Asterión as palavras “catorze” e “infinito” se equivalem, ou melhor, talvez se equivalham. O engraçado é que sob a fachada de uma possibilidade dupla de tradição fictícia existe uma verdadeira. Borges nos alerta das intricadas vicissitudes do texto sem nos aliviar do mistério final: teria o Minotauro encontrado seu fim com paz, ou se debatido em busca de defesa, de maneira embriagada e desajeitada, acometido por medo nos segundos finais?
Na tradução para o inglês que fizeram em conjunto, Borges e Norman Thomas de Giovanni traduziram a última frase para “the minotaur barely put up a fight”. (BORGES, 1973) Na edição de 1972 da Editora Globo o conto se encerra com a frase “O Minotauro apenas se defendeu”. Na primeira tradução que li para minha língua materna, o Minotauro dá um sinal de medo, ou hesitação, ao buscar defesa. Na tradução de Borges e Thomas de Giovanni a questão da defesa é deixada de lado, para destacar que mal houve uma luta. Se não houve luta, o que ocorreu entre o Minotauro e Teseu? Um sacrifício. O credo e a capacidade de oferecer sua vida por algo maior que si são o último toque de humanidade que Borges confere ao Minotauro.
Borges tirou de Lempriere o fato do Minotauro se chamar Astérion. A referência ao redentor (“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra”) é de Jó 19:25. O Minotauro tinha o corpo de um homem e a cabeça de um touro. Dante o imaginou como um touro com uma cabeça de homem. A especulação de Asterion sobre a aparência de seu redentor é sem dúvida um eco disso. A fala ao final sobre a espada não exibir nenhum sangue é do final de “O homem da esquina rosada” (Giovanni, 1973. p. 62, tradução própria)[2]
Ao introduzir a tradução do conto para o inglês, Thomas de Giovanni escreve: “A história tem também um lado comovente. Nas palavras de Borges ‘se trata de uma história triste, sobre solidão e estupidez.’… Remete a se sentir inútil e sozinho” [3](GIOVANNI, 1973. p. 62)
O sonho de um relato impossível de uma criatura não-humana para falar de um sentimento central na experiência humana: a solidão. A solidão que protagoniza a vida de Astérion, é o par de óculos através do qual ele testemunha o Universo. E para uma criatura que se sente fundamentalmente distinta de todas as outras, o Universo, constelado por semelhanças, torna-se prova de seu isolamento, pois as significações que se desdobram como uma rede para unir esta coisa àquela parecem atuar em tudo que não o ser de Astérion.
É justamente nesse relato impossível que mora sua redenção, pois:
Desde que as frases circulam nos cérebros ocupados em refle
ctir, pôs-se em curso uma identificação total porque toda a frase, com ajuda de uma cópula, liga uma coisa à outra; e tudo estaria visivelmente ligado se um único olhar descobrisse a totalidade do percurso deixado por um fio de Ariadne que conduz o pensamento no seu próprio labirinto (BATAILLE, 2007. p. 45)
É através de sua articulação da linguagem que essa figura monstruosa consegue tecer sua própria rede de semelhanças e fixar a sua humanidade.
A associação do desejo pela integração com a morte, o desejo pela companhia do outro como o desejo por um carrasco. Trata-se do dilema do porco-espinho: não é possível estar perto sem machucar e ser machucado. Astérion diz aguardar pelo seu redentor, seus dias se tornam coloridos pelo propósito da união, uma promessa do fim de sua solidão. A violência e o sacrifício, os únicos contatos que conhece, conferem sentido à sua existência. O tema do duplo, recorrente na obra de Borges, aparece aqui com um tom que mescla a ternura e a melancolia. “A uma tela de Watts, pintada em 1896, devo ‘A Casa de Astérion’ e o caráter do pobre protagonista.” (BORGES, 1972. p. 144)
Quando li no epílogo de O Aleph que o conto “A Casa de Astérion” foi inspirado por uma tela imaginei imediatamente que se tratava de um retrato do assassinato do Minotauro por Teseu. Ainda na linha do senso de humor borgiano, descreverei a pintura que, tendo em vista minhas habilidades escassas na área, permanecerá existente somente em primeiros segundos na minha imaginação: tive o breve sonho de um Minotauro fraco e indefeso no chão, seus olhos em direção ao espectador, seu corpo rebaixado sob a espada e algo de humano e singular captado em seu olhar. A tela de Watts é mais sutil, e o caminho da humanidade do Minotauro também reside no seu olhar, ou melhor, no horizonte que ele encontra e na contemplação que sua posição sinaliza.
Creio ser o horizonte o narrador do conto; o futuro, o passado, desejos íntimos, a utopia, nossos sentimentos embolados em nós, inacabáveis. Gosto de pensar que o narrador do conto é capaz de transitar do íntimo de Asterion a uma visão externa do diálogo de Teseu por ser algo que é simultaneamente seu e do mundo. O pensamento de que o narrador do conto se trata de qualquer dado objeto contemplado por Asterion consiste em um sonho melancólico e peculiar: o de que quando olhamos há sempre o que nos olhe de volta e no esquecimento dos séculos fica fossilizada em cada coisa sobre a qual pousamos a mirada a memória de nossas breves vidas.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. “O ânus solar” In: O ânus solar (e outros textos do Sol), trad. Aníbal Fernandes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 45-52
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Trad. Flávio José Cardozo. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.
BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Madrid: Alianza Editorial, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Labyrinth and Other Stories. Trad. James E. Irby New York: New Directions, 1964.
BORGES, Jorge Luis. “The House of Asterion” In: Review Literature and Arts of the Americas Vol.7, No.10. p. 63-64 Published Online 2012.
GIOVANNI, Norman Thomas de. “Review: The House of Asterion. In: Review Literature and Arts of the Americas Vol. 7, No.10. p. 62 Published Online 2012.
TILNEY, Martin. “Waiting for Redemption in The House of Asterion: A Stylistic Analysis.” In: Open Journal of Modern Linguistics Vol.2, No.2. Published Online June 2012 in SciRes.
- LAURA MIRANDA KHOURY é Bacharel em Letras pela UniRio. Foi bolsista PIBIC dos projetos de pesquisa “Corpos dissonantes, escritas insurgentes: inflexões feministas na literatura e em outras artes”, sob orientação de Carla Miguelote; e “Cartografias da disputa, a Literatura Comparada e o discurso das ciências humanas”, sob orientação de Kelvin Falcão Klein.
[1] “Just as people exist within the labyrinth, the labyrinth also exists inside people.” Tradução minha.
[2] The fact of the Minotaur’s having been called Asterion Borges got out of Lempriere. Reference to the redeemer (“For I know that my redeemer lives . . . “) is from Job 19:25. The Minotaur had a man’s body and a bull’s head. Dante imagined him as a bull with a man’s head. Asterion’s speculation about what his redeemer may look like is doubtless an echo of this. The line at the end about the sword showing no blood is lifted from the close of “Streetcorner Man.”
[3] “Then too the story has a poignant side. In Borges’ words, it ‘’is also a sad story—a story of loneliness and of stupidity’’… It stands for feeling lonesome, for feeling useless.”





