Tradução de Juliana Lugão
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A esta felicidade de rememorar funde-se outra: a de possuí-la na memória. Já não posso separar as duas. E é apenas uma fração do dom do instante que narro aqui: ele recebeu a dádiva de se desdobrar numa imagem na memória. O instante em que, em cima da bicicleta, sucumbi ao terreno irregular e logo experimentei o rilhar do cascalho e o cintilar dessas finas pedrinhas, como outro, num barco, com as ondas a bater e a brilhar – este instante está entre aqueles que jamais havíamos visto até que deles nos recordamos. Ele é testemunha da originalidade da memória, oculta e plena de significado, que nós, do modo mais claro e tangível, nas imagens que reconhecemos de modo irrefutável nas imagens em que – tal como em alguns sonhos [às vezes em sonhos] – podemos nos ver. De pé, diante de nós mesmos, como decerto já estivemos nalgum lugar no passado, embora nunca à nossa própria vista. E precisamente as imagens mais importantes, aquelas reveladas na câmara escura do instante vivido, são as que assim se apresentam. Assim, algumas vivências cotidianas sem muita relevância ou significado deixam um brinde uma pequena fotografia, como um objeto usado qualquer. E, quando olhamos mais de perto, vemos que se trata de uma foto de um instantâneo de nós mesmos. E a tal “vida inteira”, essa de que muitas vezes ouvimos falar, quando pessoas estão à beira da morte ou paira sobre elas o risco de morte, é constituída precisamente por estas pequenas fotografias justapostas. Sua sequência é veloz, nada diferente daqueles livrinhos precursores do cinematógrafo, com que, quando crianças, ficávamos maravilhados ao ver um boxeador ou tenista ou um boxeador, se deixássemos o polegar correr rapidamente e com uma leve pressão pela borda lateral. Nestes Em momentos de perigo extremo, a imaginação parece ter o poder de reunir numa sequência de luminosidade onírica imagens que parecem completamente desconexas, pelo mero acaso de que surgimos, diante de nós mesmos, no centro delas. Se as memórias pudessem se manter sempre neste nível, formariam [[um maravilhoso,]] um vívido Memento Mori. Mas então
* [ ] acréscimo do autor na entrelinha superior
[[ ]] acréscimo do autor na entrelinha inferior
palavra riscado à tinta pelo autor
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Limiares da escrita – sobre a tradução de um manuscrito de Walter Benjamin
Juliana Lugão
O manuscrito de Walter Benjamin (WBA 371/19) em uma folha avulsa de cor bege, formato 13X17,2, com tinta preta já esmaecida, integra o vasto material do complexo Berliner Chronik/Berliner Kindheit um neunzehnhundert. Trata-se de um conjunto de papeis avulsos em torno do que o leitor conhece como Infância em Berlim por volta de 1900 e chega a cerca de 350 páginas, distribuídas em folhas de diversos formatos e materiais, ao qual somam-se ainda exemplares impressos, recortes de jornal – corrigidos a mão por Benjamin mesmo após a publicação –, correções a datiloscritos parciais, pequenas anotações avulsas, revelando um processo de composição no mínimo difícil, também para o autor, que certa vez o caracterizou como seu “livro despedaçado.”
Embora Infância em Berlim por volta de 1900 conte com pelo menos duas versões datilografadas, os chamados tiposcritos de Berlim e Paris, indicando um projeto avançado de publicação em livro por parte do autor, o resultado final que o leitor conhece corresponde a um trabalho editorial póstumo realizado inicialmente por Theodor Adorno e, mais tarde, por Gershom Scholem e Rolf Tiedemann. Diante da revelação do material em torno do título mais conhecido dessa constelação de escrita, que se deve especialmente aos recentes esforços para a publicação de edições críticas, apresenta-se, aqui, a tradução de um desses papeis avulsos, com o objetivo de contribuir para a leitura e análise do caráter processual e experimental de obras que comumente nós, leitores, consideramos prontas – e também por isso o texto é apresentado com alguns dos resíduos de revisão que o manuscrito contém.
Apesar do desconforto da leitura (e da tradução) de um texto que evidentemente não se destinava à publicação, o manuscrito aqui trazido ocupa um lugar relevante no complexo, pois dá a ver justamente a passagem entre o manuscrito Berliner Chronik (Crônica berlinense), que começou a ser escrito por encomenda da revista Literarische Welt, e o projeto literário-experimental Berliner Kindheit um neunzehnhundert (Infância em Berlim por volta de 1900).
As primeiras frases de WBA 371/19, que não trazem nenhum título ou indicação do que trata o material, parecem retiradas diretamente da página 56 do caderno em que está a Crônica (WBA 398/56), são muito poucas as alterações. Mas o autor logo muda o rumo de seu texto e passa ao relato do acidente de bicicleta sofrido pelo pequeno Walter nas férias de verão, que até aparece na Crônica, mas é descrito com mais detalhes em Infância em Berlim por volta de 1900 na peça “Ilha dos pavões e Glienicke”. No manuscrito aqui trazido, chama a atenção, na escrita do adulto Walter Benjamin, a busca das palavras justas para criar, no texto, as sensações, especialmente os sons: os verbos substantivados Knirschen, Flimmern, Klatschen e Glitzen criam o ambiente sonoro para o relato da queda atabalhoada. Do acidente passamos a uma reflexão sobre a memória e o déjà-vu, sem que se nomeie o fenômeno, agora sim retornando ao universo da Crônica, em que há anotações sobre o déjà-vu, além do recurso ao universo da fotografia e suas metáforas para descrever os processos da memória, como aqui.
Nesse ponto, um leitor familiarizado com a obra de Walter Benjamin encontra uma pista para o projeto da Infância – e, por que não, um aceno para o projeto benjaminiano de pensamento histórico? O autor dá às imagens (d)e acontecimentos aparentemente insignificantes o valor que devem ter: aquele de, juntas, constituírem nossa vida, nossa história, nós mesmos. Ao chegar às imagens insignificantes reunidas, justapostas, lemos algumas linhas que ecoam a/na peça “O corcundinha”, de Infância. Aqui, o personagem que guarda um pedacinho de cada acontecimento da infância do autor não é nomeado, mas o efeito das imagens passando velozmente como nos livrinhos animados funciona com uma carta de intenção para seu projeto literário de escrita memorial: de recriar recordações de luminosidade onírica, um memento mori vívido e maravilhoso.
O manuscrito, um rascunho insignificante, em uma releitura dentro do material de arquivo, revela toda sua força. Lemos o processo de criação e o trabalho da recordação em ato. No processo de criação, Benjamin vai revelando as imagens aparentemente insignificantes, tornando-as mais vívidas, e deixando a reflexão sobre memória como mecanismo escondido de seu projeto literário Infância em Berlim por volta de 1900. Iluminando peça a peça, a criança não pode se ver porque é ela mesma o centro da vívida e maravilhosa imagem de recordação.
- Juliana Lugão é Doutora em Estudos de Literatura (UFF) e tradutora. Atualmente é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, W. Berliner Chronik / Berliner Kindheit um neunzehnhundert. Org: Nadine Werner. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2019 (Werke und Nachlaß: Kritische Gesamtausgabe, v.11)
____. Gesammelte Briefe: Band V 1935-1937. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1999, p.186-190
____.〈Mit diesem Glück〉– Entwurf zu Das bucklichte Männlein, Pfaueninsel und Glienicke [WBA 371/19]. In: Walter Benjamin Digital. <https://www.walter-benjamin.online/seite/edition/wba_371_19>