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1. Introdução
Proponho neste artigo uma comparação entre as conceituações do realismo literário moderno elaboradas por três pensadores: Jacques Rancière, Franco Moretti e Roland Barthes. O eixo da comparação será o modo como cada um dos autores compreende as implicações políticas da estética do realismo literário moderno e, mais especificamente, da importância assumida pela descrição nas narrativas realistas. Para realizar essa análise, o trabalho se concentrará principalmente sobre três ensaios: “A política da ficção”, de Jacques Rancière; “O século sério”, de Franco Moretti; e “O efeito do real”, de Roland Barthes.
A comparação entre esses textos mostrará como os três autores reconhecem como um dos traços fundamentais do realismo moderno o surgimento de uma nova lógica de composição literária, na qual a descrição deixa de ser um elemento subordinado ou complementar à narração para assumir uma importância inédita. Os três concordam também em atribuir um forte sentido político a essa transformação estética, mas elaboram interpretações distintas dessa relação.
Em suas reflexões sobre as implicações políticas da estética realista, Barthes e Moretti identificam nesta um forte sentido conservador: o primeiro, vendo no detalhe desprovido de função narrativa das ficções realistas uma naturalização ideológica da vida burguesa; o segundo, associando o ritmo distendido instaurado pela inflação descritiva da literatura moderna a uma tradução estética da valorização burguesa da rotina, que acabaria por recalcar a dimensão mais contingente, e potencialmente revolucionária, do devir histórico.
Em contraponto, encontramos em Rancière uma interpretação do realismo como uma estética igualitária, que, ao questionar a antiga hierarquia entre narração e descrição, rompe também como uma hierarquia de formas de vida à qual ela estava associada, abrindo espaço para que pobres, trabalhadores e outras figuras socialmente marginais ocupem o primeiro plano da obra literária.
Procuramos principalmente, na pesquisa de que se origina este artigo, situar as contribuições mais recentes de Rancière para esse debate, verificando como o autor se posiciona em relação a seus antecessores nesse campo de estudos, sondando tanto afinidades quanto divergências e contribuições originais. Começo minha exposição aqui pelas ideias de Barthes e Moretti, porém, já que elas demarcam importantes vertentes de interpretação do realismo literário moderno em diálogo com as quais as quais Rancière vai elaborar sua intervenção.
2. Barthes e a nova verossimilhança realista
Em seu clássico ensaio “O efeito do real”, Roland Barthes introduz seu argumento a respeito da escrita realista aludindo a uma cena da novela “Um Coração Simples”, de Flaubert. trata-se de uma descrição na qual são citados diversos objetos de um cômodo, entre eles, um barômetro. Barthes trata esse barômetro como uma espécie de enigma. Alguns dos objetos citados, ele diz, podem até ajudar a caracterizar a situação social ou os hábitos dos habitantes daquela casa. Mas o barômetro parece um detalhe meio gratuito, excessivo, desprovido de razão de ser. Ele não participaria daquilo que Barthes chama de “ordem do notável”. Por que detalhes assim, Barthes se pergunta, que parecem não ter nenhuma razão de ser do ponto de vista da composição da obra literária, se tornam tão comuns no realismo literário moderno?
rário moderno?
É na tentativa de responder a essa pergunta que o crítico francês formula sua conhecida tese sobre o “efeito do real”. Barthes lembra que a principal tradição ocidental de reflexão sobre a escrita de ficção, de inspiração aristotélica, considera que o enredo ficcional se define, grosso modo, pela produção de um efeito de verossimilhança. Tal efeito demandaria, para ser atingido, uma concatenação das partes da narrativa segundo relações inteligíveis de causa e efeito. Enquanto o historiador se limitaria a narrar uma coisa depois da outra, seguindo um princípio cronológico ou de simples adição de informações, o poeta, segundo a comparação famosa de Aristóteles, narraria coisas que acontecem uma por causa da outra, de maneira a elaborar uma sequência que deve compor um todo orgânico, bem ordenado, no qual cada parte contribua para a composição do conjunto. A tese de Barthes é que o realismo moderno parece em alguns momentos inverter esse princípio, quando se limita a mencionar detalhes que aparecem uns depois dos outros, sem que se entenda por que eles estão ali, já que parecem arbitrários, pois não contribuem para o andamento da narrativa nem se concatenam segundo os princípios causais verossímeis que seriam esperados das boas histórias de ficção. Os autores realistas teriam então aberto mão da meta de compor histórias convincentes, persuasivas? Não, diz Barthes. O que eles fazem é inventar um novo tipo de verossimilhança. Esses detalhes arbitrários seriam convincentes, para um leitor moderno, justamente por parecerem arbitrários. O mais verossímil, para a sensibilidade moderna, já não seria o enredo em que todas as partes estão bem amarradas, mas justamente essas partes que parecem apenas estar lá, sem desempenhar função nenhuma do ponto de vista da composição literária. Essas partes seriam verossímeis, diz Barthes, porque parecem estar ali por si mesmas, como se fossem uma simples manifestação direta do real na página, e não parte de um artifício criado pelo escritor.
Para elaborar essa ideia, Barthes propõe uma abordagem semiológica da questão, inspirada na obra do linguista Ferdinand de Saussure, para quem o signo é uma entidade dupla, composta por significado, a ideia abstrata que se exprime no signo, e o significante, sua notação imagística ou sensorial. No realismo, diz Barthes, é como se algumas partes não tivessem significado, como se o significante, a palavra na página, estivesse ali apenas como indicação do seu referente, da própria coisa que ela designa. Em resumo, é como se a escrita do realismo literário se apresentasse nesses momentos como uma janela direta para o mundo, apagando o papel da própria linguagem como mediadora dessa relação entre o leitor e o real. Mas é exatamente isso então, Barthes diz ainda, que acaba sendo o significado desses detalhes que parecem sem significado. É como se eles dissessem ao leitor “eu sou o real”, o real em si mesmo:
“ […] o barômetro de Flaubert, a pequena porta de Michelet afinal não dizem mais do que o seguinte: somos o real, é a categoria do “real” (e não os seus conteúdos contingentes) que é então significada; noutras palavras, a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se O significante mesmo do realismo: Produz-se um efeito de real fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade.” (2004, p. 190)
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Barthes vê nisso uma dimensão ideológica da escrita realista, que vai ser compreendida na relação entre o realismo e a valorização moderna da objetividade científica, do avanço tecnológico, que para ele disfarçam a historicidade da experiência humana do mundo. Essa ideia de um acesso direto ao real acabaria apagando o fato de que o mundo humano é sempre construído historicamente. Haveria então uma dimensão conservadora inerente à escrita realista, pois ela acabaria por naturalizar a ordem social que descreve.
3. Moretti e o novo tempo da rotina realista
Enquanto Barthes se concentrava na questão da verossimilhança e da relação entre significante e significado na escrita realista, Moretti, no ensaio “O século sério”, vai concentrar sua análise em dois aspectos principais: a temporalidade das histórias e um certo tom ou inflexão narrativa que demarcariam as principais novidades do realismo moderno em relação a estilos literários anteriores, assim como seu vínculo estreito com a sociedade burguesa.
No que diz respeito à experiência temporal, Moretti argumenta que a importância assumida pela descrição nas obras realistas contribui para que nelas a representação do trivial e do rotineiro seja muito mais frequente do que a representação do extraordinário. Nos termos usados por Moretti, o tempo da literatura realista é feito muito menos de “bifurcações”, as reviravoltas que fazem a história andar, do que de “enchimentos”, os pequenos detalhes que não chegam a provocar mudanças substanciais num estado de coisas qualquer:
“São esses os enchimentos. E Barthes tem razão, não são grande coisa: acrescentam mil nuanças ao desenrolar dos acontecimentos, mas não conseguem nunca modificar “as alternativas que foram apresentadas”. E não conseguem porque, como em Vermeer, são cotidianos demais para tanto” (2003, pp. 6 -7)
Essa ênfase sobre o cotidiano, o tempo repetitivo da rotina, é complementar à predileção por um tom ou inflexão que Moretti, a partir das reflexões de Diderot, vai chamar de “sério”. Em vez da antiga contraposição entre trágico e cômico, e de sua associação respectiva à representação das classes altas e baixas, o gênero “sério” corresponderia à ascensão de uma nova classe nem exatamente nobre nem tampouco plebeia, a classe burguesa. Ao mesmo tempo um estilo e um ethos, o gênero sério daria expressão formal a valores burgueses como o cálculo, a ética de trabalho, a valorização da razão e a suspeita em relação aos arroubos emocionais.
Dessa combinação entre o predomínio dos enchimentos e o tratamento “sério” dos seus temas, resultaria, na literatura moderna, um apagamento das experiências históricas de revolução e transformação radical que não estavam muito distantes. O sucesso dessa nova literatura estaria ligado a certa sensação reconfortante provocada por essas histórias em que o tempo histórico acabava resumido à repetição e à previsibilidade da rotina.
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4. Rancière e a escrita da igualdade
Embora concorde em identificar o realismo moderno como um momento de profunda transformação da literatura ocidental, assim como em atribuir à dimensão estética dessa transformação um importante sentido político, Rancière compreende em outra chave aquilo que se transforma com a revolução realista. Em seu ensaio “A política da ficção”, Rancière argumenta que a revolução fundamental da literatura moderna está em sua ruptura com o modelo narrativo centrado no encadeamento das ações dos personagens, seguindo uma série de relações de causas e efeitos. O escritor diz que o modelo teórico central desse tipo de narrativa é a Poética de Aristóteles. Ao associar ao realismo moderno a formulação de uma nova verossimilhança, diz Rancière, Barthes deixou de notar o nó político fundamental que estaria em jogo na concepção narrativa elaborada por Aristóteles. Haveria uma estrutura hierárquica implícita no modelo narrativo aristotélico, baseada numa hierarquia entre duas formas de vida: a dos seres humanos capazes de agir e a daqueles que apenas sofreriam os efeitos das ações. Apenas os homens livres dispunham de tempo para a ação transformadora do mundo, enquanto trabalhadores, mulheres e escravizados viviam no tempo repetitivo do trabalho, e, por isso, não poderiam ser de fato sujeitos da ação. Sendo assim, suas vidas ocorreriam numa temporalidade incompatível com aquela pensada na Poética, na qual a ação e as transformações que ela produz seriam o elemento fundamental do enredo narrativo. É justamente esse outro tempo que entraria em cena com a literatura moderna. E ele seria marcado por uma experiência de um limite entre a simples repetição do cotidiano e os momentos nos quais os personagens inventam uma vida nova para si mesmos, fugindo aos papéis sociais a que estariam destinados:
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“A verdadeira linha decisiva em que a ficção se constrói e ganha sentido é a que separa o ‘nada está acontecendo’ do ‘está acontecendo alguma coisa’. A ficção moderna é a ficção do momento e do ato às bordas do nada.” (2014, p. 22)
na literatura moderna, diz Rancière, nos deparamos com pessoas humildes experimentando sentimentos antes reservados apenas aos personagens de classes altas, cuja representação se dava preferencialmente em gêneros eles mesmos entendidos como “nobres” ou mais elevados do que os outros – principalmente o trágico e o épico. Nesse sentido, a prevalência da descrição no realismo moderno subverteria tanto essa antiga hierarquia dos gêneros quanto a ordem social à qual ela estava ligada. Dessa dissolução entre a antiga associação entre os gêneros e as classes sociais, assentada sobre a centralidade da noção de “ação” como elemento fundamental de construção do enredo ficcional, resultaria um colapso da própria diferença entre narrar e descrever na literatura moderna. Ações e descrições, acontecimentos e imagens passariam a constituir uma nova trama textual, não mais organizada segundo a lógica das relações inteligíveis-verossímeis de causa e efeito do modelo aristótelico, formando agora algo que Rancière chama de “tecido de micro acontecimentos sensíveis”:
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“(…) a base social da poética representativa [era a] partição entre as almas elevadas e as vulgares. Quando esta partição desaparece, a ficção fica a abarrotar de acontecimentos e sensações insignificantes de todas aquelas pessoas comuns, que, das duas uma, ou não eram levadas em conta na lógica representativa ou, se o fossem, eram remetidas para o seu lugar (inferior) e representadas nos gêneros (inferiores) adequados à sua condição (…). O desdobramento aristocrático da ação é bloqueado pela desordem democrática das imagens. Contudo, no que toca à lógica representativa, o que acontece salda-se bem mais numa dupla perda. Tal como a ação perdeu a sua estrutura anterior enquanto concatenação de causas e efeitos, a imagem perdeu a função de transmitir a qualidade emocional da ação ou de expor paisagens aprazíveis durante as suas pausas. Ação e percepção, narração e imagem transformaram-se numa única fábrica de micro-acontecimentos sensoriais” (2014, pp. 9-11).
5. Conclusão
Destaca-se então, a partir dessa comparação entre os três autores, certa afinidade entre as posições de Moretti e Barthes a respeito do realismo. Mesmo que Moretti focasse mais na temporalidade e Barthes na questão do signo, os dois concordam que a nova importância assumida pela descrição no realismo moderno, embora transformadora do ponto de vista estético, tem um sentido político conservador. Como naturalização da história (para Barthes) ou tradução formal de um ethos burguês, cristalizando hábitos e valores (para Moretti), o realismo estaria ligado a um recalque da própria origem revolucionária da sociedade burguesa e à busca pela consolidação de uma experiência temporal mais estável e repetitiva, o que favoreceria a manutenção do novo status quo.
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Enquanto isso, para Rancière, Barthes ignora a verdadeira questão do realismo, que é a sua ruptura com a hierarquia social implícita no privilégio dado à ação na Poética e em toda tradição subsequente para a qual a reflexÃo aristotélica ganha um sentido canônico. Também é possível contrapor a tese de Rancière à ideia de Moretti de que a ênfase realista na rotina promoveria uma expressão formal de valores burgueses de racionalização e controle da realidade. Para Rancière, o que está em jogo é antes a abertura para um tempo do trabalho que permite trazer à tona o cotidiano das pessoas comuns, que antes não teriam poder transformador na narrativa, e colocá-las como o centro das ações, o que estaria mais afinado com a ideia de uma democracia literária do que com o apagamento da dimensão transformadora do processo histórico.
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- Amanda de Figueiredo de Carvalho é aluna da licenciatura em Português-Italiano na Faculdade de Letras da UFRJ. Este trabalho foi apresentado originalmente como uma comunicação na XII Semana de Integração Acadêmica da UFRJ, realizada em setembro de 2023.
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Referências Bibliográficas:
BARTHES, Roland. “O efeito do real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Pp. 181-190. Tradução de Mario Laranjeira.
MORETTI, Franco. “O século sério”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.° 65, pp. 3-33, março de 2003. Tradução de Alípio Correa e Sandra Correa.
RANCIÈRE, Jacques. A política da ficção. Lisboa: KKYM, 2014. Tradução de J.P. Cachopo.